Conceição Evaristo lota evento da Flup na Maré

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Por Carolina Vaz

Foto de capa: Raysa Castro

A Maré recebeu, no último dia 07, a renomada escritora Conceição Evaristo, em mesa da Festa Literária das Periferias (FLUP) realizada no Centro de Artes da Maré (CAM), na Nova Holanda. Ela esteve em uma das mesas “Quilombo do Lima”, que referenciam os 100 anos de falecimento de Lima Barreto, escritor e jornalista dos tempos do Modernismo que foi marginalizado por demais intelectuais da época.

Na mesa “Diário íntimo: quando escrita de si traduz o mundo” estavam Conceição Evaristo, doutora em Literatura Comparada, poetisa, escritora, professora e militante de movimento negro, junto à também convidada Yanick Lahens, haitiana, que também se formou em Literatura Comparada e fundou a Associação de Escritores Haitianos, se dedicando mais a textos da autoria de haitianas negras. A mediação foi de Angélica Ferrarez, doutora em História Política, que pesquisa e escreve sobre mulheres negras de destaque.

Escrevivência, o individual e o coletivo

Um dos primeiros temas da mesa foi o conceito de “escrevivência” de Conceição Evaristo. Ela explicou que, embora pareça apenas a aglutinação de duas palavras levando à significação de “escrever sobre a vivência”, é preciso considerar a genealogia do termo, que nasce da experiência de mulheres negras. No Brasil e em outros países que se formaram na escravização de africanas e africanos, até mesmo a fala de si foi negada às mulheres negras, à medida em que elas eram incumbidas de contar histórias para crianças brancas e essas histórias não eram sobre elas mesmas.

A escrevivência retomaria, em termos de memória, o processo de escravização que essas mulheres e sua voz estava condenada a cumprir, como se quisesse apagar essa imagem. Ela não é renovada. A escrita das mulheres negras pretende justamente apagar essa imagem antiga. Cada vez que nós retomamos essa imagem antiga é pra afirmar que saímos desse lugar. A escrita da mulher negra não é uma produção ficcional para adormecer os da Casa Grande”.

Conceição Evaristo

Ao mesmo tempo, a escrevivência extrapola uma história pessoal, mesmo porque os desafios e dores da população negra perante o racismo são compartilhados. O próprio Lima Barreto, ao escrever em seu diário sobre as situações de racismo, levava a dor de uma coletividade. As duas autoras concordam, na mesa, que as histórias e escritas de autoria negra dos países colonizados podem ter muitas semelhanças, por partir da experiência afrodiaspórica. Para Conceição, talvez seja uma literatura mais universal do que se pensa.

A literatura negra chega fragmentando o sistema

Embora Conceição tenha conquistado seu espaço entre os principais nomes da literatura brasileira atual, ela reconhece e critica todos os obstáculos que sempre houve e persistem para a produção literária da população negra. Até hoje, as referências de obras tradicionais, da literatura nacional, é de homens brancos em sua grande maioria. Apenas no Modernismo, há cerca de 100 anos, mulheres brancas passaram a publicar mais, e no caso das mulheres negras o espaço vem sedo conquistado há no máximo 15 anos. E isso se dá, não somente pelo acesso a cursos de Letras e outros que levem a uma boa escrita, nem também pela falta de recursos financeiros para publicar, mas pelo próprio conteúdo das publicações.

Conceição abordou temas como linguagem e exclusão no sistema literário. Ao seu lado, Yanick Lahens. Foto: Raysa Castro.

Para Conceição, a literatura de autoria negra chega fragmentando o sistema literário brasileiro, e em muitos casos sem ser considerada literatura. E o lugar que se conquistou, a exemplo de haver, hoje, curadores negros no Prêmio Jabuti, precisa ser ocupado com cautela para não legitimar a exclusão de muitos pela ascensão de alguns: “Nós temos que tomar muito cuidado para não virarmos exceção, porque isso fortalece o discurso da meritocracia”.

Na experiência de Yanick no Haiti, o que se dá é que os autores homens são mais conhecidos, e suas obras são compostas tanto por uma língua “bem falada” como por conteúdos, de certa forma, mais leves. E as autoras haitianas que começaram a se destacar já levaram para as obras temas como desejo, participação política, perseguições às mulheres, entre outros. Tornou-se um fator de empoderamento, segundo ela: “Há uma retomada de poder pelas mulheres, hoje no Haiti, através da escrita”.

“Não tem nada mais potente do que a gente dizer ‘é nós’”

Outro assunto importante para se abordar a literatura negra é a linguagem. No caso de Yanick, existe uma questão do idioma em si, uma vez que o país foi colonizado pela França mas no século XX começou a, cada vez mais, voltar a falar e escrever o criolo. Hoje fala-se mais o criolo, mas no campo da escrita existem também autores e autoras escrevendo em inglês, espanhol e francês, e isso precisa ser compreendido como parte do contexto nacional.

Mas no Brasil isso pode ser aplicado a como as classes populares se apropriam da língua portuguesa, e a resistência dos espaços acadêmico e editorial em aceitar a linguagem “popular”, até hoje. Isso passa, também, pelo racismo. Um exemplo mostrado por Conceição é que as obras de Guimarães Rosa eram repletas de neologismos (novas palavras), que ele ouvia circulando nas ruas, mas quando Carolina Maria de Jesus escreve ipoteca é considerado um erro. Sendo que há indícios, nos escritos originais, de que tenha sido uma ironia. Até mesmo no caso de Conceição, que criou a frase “A gente combinamos de não morrer”, que não apresenta qualquer problema de sentido, essa frase foi “corrigida” para o nós. Perante essa rigidez da literatura escrita, Conceição Evaristo acredita que as artes que melhor têm recriado a língua hoje são o rap e slam, e ela mostrou sua admiração: “Não tem nada mais potente do que a gente dizer ‘é nós’”.

Uma grande quantidade de jovens compôs o público da mesa “Diário Íntimo”. Foto: Raysa Castro.

A mesa com Conceição Evaristo, Yanick Lahens e Angélica Ferrarez na FLUP, que pode ser assistida no Youtube, ficou lotada de pessoas de todas as idades, mas principalmente jovens. Em virtude de precauções em relação ao Covid não houve sessão de autógrafos nem de abraços e outras interações mais próximas de Conceição com o público, mas ela foi fortemente aplaudida ao passar pelo galpão na saída.

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