Projeto Música na Maré aposta na coletividade para formar orquestra com crianças e adolescentes

Cultura, Educação, Música, Notícias

Entrevistas por Ana Cristina da Silva e Carolina Vaz.

Texto por Carolina Vaz.

Foto de capa: José Bismarck.

É possível criar uma orquestra de crianças e adolescentes em menos de um ano? O Instituto Vida Real, na Nova Holanda, prova que, com dedicação e treinos três vezes por semana, é possível sim. A orquestra Vida Real é resultado do projeto Música na Maré, iniciado em março deste ano, que oferta gratuitamente aulas de canto e de instrumentos para crianças, adolescentes e adultos. Com muito treino, tanto nos instrumentos individuais quanto na prática de conjunto da orquestra, o grupo de mais de 100 pessoas se prepara para o recital de Natal no Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, também na Nova Holanda, no dia 22 de dezembro às 18h.

Muitos desses alunos entraram no projeto sem ter certeza do que queriam fazer, como é o caso do Arthur Araújo, de 12 anos. “Eu fui descobrindo o que tinha, no início eu não sabia que tinha aula de música e fui descobrindo com o tempo. Eu e minha mãe gostamos muito de violino, a gente gosta de ouvir músicas clássicas. Eu estava no canto, descobri que tinha violino e fui pro violino”. Ele entrou no projeto logo no início, após indicação de um amigo da escola e de sua própria mãe. Pesquisando um pouco mais ele se interessou. Todos os dias entre segunda e sexta ele chega no Instituto por volta das 13h, depois de sair da escola, e passa a tarde por lá. Além do violino, Arthur gosta muito da aula de games.

Arthur, de 12 anos, já gostava de ouvir música clássica, e agora está aprendendo a tocar violino. Foto: José Bismarck.

Isso porque, no Vida Real, não é possível para uma criança ou adolescente cursar apenas a aula de instrumento ou canto. Todos precisam frequentar o reforço escolar e as aulas de informática e grafite, que são as três atividades que acontecem toda segunda-feira e quarta-feira. Às terças e quintas tem canto, instrumento e fotografia, e às sextas a Prática de Conjuntos, que é o ensaio de toda a orquestra. Além disso, têm à disposição uma equipe psicossocial com pedagogos, psicólogos e assistentes sociais. Tudo isso acontece das 8h às 18h30, e nessa configuração os alunos nunca ficam ociosos, mesmo porque têm à disposição a Biblioteca Comunitária Luciana Savaget, que tem entre três e quatro mil livros. Além de poderem ser consultados na hora, há a possibilidade de empréstimo não só pelos alunos como por qualquer morador.

As crianças também utilizam o espaço para estudar e fazer trabalhos escolares, seja no computador ou com o material de papelaria disponível. Toda essa gama de opções é o melhor lado do instituto para a Nicolly Vitória, de 12 anos: “Eu acho bem legal pra quem quer criar uma rotina boa e ser alguém lá na frente, ser alguém na vida, pode começar daqui”. Ela descobriu o Instituto Vida Real após ter muita curiosidade sobre o que era aquele espaço. Isso porque o Instituto se localiza atrás da Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva, que ela frequenta: “Eu sempre tinha curiosidade de saber o que tinha aqui atrás, via um monte de gente entrando e não sabia”. Uma prima dela já cursava o projeto de música, então a mãe se informou e matriculou Nicolly e uma de suas irmãs. Para ela, além de ser um espaço que ajuda a criar uma rotina e não precisa pagar, é mais acolhedor do que a escola: “Na escola tem bullying, um humilhando o outro, e aqui a gente não vê isso… aqui todo mundo é amigo. Não tem briga, humilhação de pessoas que não têm condições financeiras”.

Para Nicolly as melhores atividades do instituto são canto e fotografia. Foto: José Bismarck.

Orquestra Vida Real: um grande grupo de músicos a partir dos 7 anos

Dentro do projeto, várias são as opções para quem opta pelos instrumentos: há os de corda, como violoncelo, violão, violino e cavaquinho; os de sopro como trompete, trombone, saxofone, flauta doce e flauta transversal; além de teclado. São três professores nessa área dos instrumentos, e um deles é o professor Rilke Von Herbert, que está desde o início. Licenciado em Música, ele já participou de outras iniciativas do Instituto desde 2014, mas como professor da orquestra em si ele está desde março deste ano. No Vida Real, ele leciona violino, violoncelo, clarineta, trombone e trompete. Para Rilke, o maior desafio da orquestra está no tempo curto de execução do projeto. Por isso, ele seguiu o caminho da Teoria Aplicada: “Eu apresentei cada instrumento, mostrei como faz e fomos pegando cada música e fazendo leitura, batendo o ritmo para que eles pudessem assimilar e executar o instrumento”, explica. Nesse tempo curto, tornou-se necessário ser exigente, e a partir desse esforço ele percebe que vários ali se revelaram como músicos e musicistas: “Nós temos o prazo muito apertado, temos pessoas que não têm instrumentos, e mesmo assim, com satisfação eu digo que alguns apareceram de uma maneira muito linda, mostrando um talento muito lindo”.

Rilke Von Herbert ensina 5 instrumentos, observando em qual cada aluno se adapta melhor. Foto: José Bismarck.

Tião Araújo, fundador do Instituto Vida Real, sempre foi um incentivador da música para os participantes dos projetos, então esta a primeira tentativa da instituição de se firmar nessa área. Eles sempre tiveram projetos de música que começaram e terminaram de acordo com leis de incentivo. Porém esta foi a que melhor se realizou, após o Instituto acessar a Lei Rouanet. Mas não poderia ficar de fora a noção de coletividade que existe no espaço, por isso o curso não se volta para formar músicos individualmente, embora cada um seja livre para seguir carreira solo. Assim, foi montada a orquestra, juntando os instrumentos e o coro. Em alguns casos, já foi possível que os pais comprassem instrumentos para os filhos, colaborando nessa motivação, o que emociona Tião: “É muito gratificante, ver que o nosso trabalho tem feito a diferença na vida desses garotos”. Esse conjunto de talentos, inclusive, já foi apresentado tanto dentro da Maré, na quadra da escola de samba Gato de Bonsucesso, como na Câmara Municipal do Rio e até fora da cidade, em Teresópolis.

Segundo Arthur Pedro, diretor pedagógico-institucional do Vida Real, o projeto tem hoje 186 participantes, sendo a maioria no coro, dividido em faixas etárias. No coro de crianças e adolescentes, dos 7 aos 18 anos, são mais de 50, e no de adultos são quase 30. A lista de espera tem centenas de nomes, mas eles só serão chamados no próximo ano, se houver evasão dos atuais participantes. Ele conta, ainda, que os instrumentos disponíveis são, em parte, comprados pelos recursos do projeto, e outra parte de doação, e que os alunos não apenas usam para ensaiar como também fazem a manutenção. Para pequenas compras, como de cordas de violão, eles fazem campanhas de arrecadação.

O crescimento do Vida Real

O Instituto Vida Real foi criado por Sebastião Araújo em 2004, e por muito tempo funcionou num espaço pequeno na rua Teixeira Ribeiro, da Nova Holanda, dispondo de duas salas para as atividades, uma biblioteca e um escritório. No novo espaço, que ocupam há três anos, além da maior quantidade de salas há o auditório, uma sala grande para a administração, biblioteca, refeitório e até uma horta, compartilhada com a Clínica da Família.

Para Tião é uma satisfação ver a instituição crescer tanto fisicamente quanto na variedade de projetos, como um dos mais recentes que é o Todo Mundo Joga Junto. Um projeto da empresa Lenovo que tem, no estado do Rio, essa estação do Vida Real, e outras duas estações em São Paulo e Santa Catarina. Alunos a partir de 12 anos de idade passam por uma formação em jogos como Valorant e Lol, e estão conectados com outros 20 jovens online das outras estações. A sala funciona das 8h às 17h, com turmas de 2 horas ao longo do dia, e o projeto está com inscrições abertas.

No projeto Todo Mundo Joga Junto alunos da Maré interagem com demais de outros estados. Foto: José Bismarck.

Outro projeto que tem muita procura no Vida Real é o curso de fotografia. A professora, Mayara Melo, é “cria”: moradora do Parque União, ela foi aluna do Vida Real quando tinha 14 anos de idade, e se destacou na prática, tendo a oportunidade de acompanhar seu então professor em eventos e se profissionalizar. Hoje, ela vive da fotografia, mas sentiu necessidade de voltar à instituição e repassar tudo que aprendeu ali mesmo, tendo logo uma resposta positiva do Tião. Atualmente, ela dá aula nesse projeto, o Transformando os Olhares da Maré, três vezes por semana, com alunos de 12 até aproximadamente 45 anos. Com duração de um ano para cada turma, o projeto aborda tanto as técnicas quanto os diversos nichos da fotografia, a exemplo de paisagem, eventos etc. Uma de suas alunas mais dedicadas, inclusive, é a Nicolly, que já descobriu gostar de fotografar paisagens, detalhes, elementos da natureza e principalmente o céu.

Fotografias tiradas no projeto Transformando Olhares ficam expostas no espaço. Foto: José Bismarck.
Mayara Mello expressa a gratidão de poder ensinar fotografia no projeto onde ela mesma aprendeu. Foto: José Bismarck.

“Eu encho minha boca pra falar.. primeiro, é um projeto muito bonito o Vida Real, e foi o que me deu oportunidade desde sempre. Agora, sete anos depois praticamente, e o Vida Real me abriu essa porta, que mudou minha vida. Então é muito bom poder retribuir isso”

Mayara Melo, professora do Transformando os Olhares da Maré

O clima de afeto envolve toda a instituição, desde a fala de Nicolly, sobre não ter bullying lá dentro, até o depoimento experiente do próprio Tião. Além de acompanhar o cotidiano da instituição, ele vive sendo abordado na rua por ex-alunos que querem abraçar, agradecer pelas oportunidades.

Tião Araújo fundou o Instituto Vida Real há 18 anos. Foto: José Bismarck.

“A gente não pode estar distante deles, porque muitos desses garotos são garotos que não têm pai, não têm mãe e, assim, são garotos que nos vêem como uma referência pra vida deles, então a gente tem que estar muito próximo”.

Tião Araújo, fundador do Vida Real

Para conhecer melhor e participar de algum projeto do Vida Real basta comparecer ao local com o RG e comprovante de residência. A equipe irá fazer o cadastro e, havendo vaga, a pessoa é chamada.
Endereço: Rua Teixeira Ribeiro, 904, Fundo. Nova Holanda, Maré.
Telefone: 3866-6761

Veja mais fotos do espaço:

A horta comunitária tem 10 canteiros, configurados no modelo de agrofloresta unindo frutos, legumes e verduras. Os alunos ajudam no cuidado. Foto: José Bismarck.
Todas as crianças e adolescentes passam pelo reforço escolar. Foto: José Bismarck.
Adultos podem fazer curso no laboratório de elétrica do Instituto, aprendendo instalação predial. Foto: José Bismarck.

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