Educação popular insere alunos nas melhores escolas e universidades públicas

Educação, Geral

Entrevistas: Carolina Vaz e Raysa Castro

Texto: Carolina Vaz

Foto de capa: Raysa Castro

Pandemia, isolamento social, internet precária, ansiedade e outras questões de saúde mental eram elementos do cotidiano de crianças e adolescentes da Maré nos anos de 2020 e 2021. Pesquisas da época projetavam grande impacto no ritmo de aprendizagem, e o quadro piora para alunos de escola pública sem acesso nem a computador nem a internet de qualidade. Apenas na segunda metade de 2021 foi possível retomar gradativamente as aulas presenciais em escolas e cursos, e o ano de 2022 ficou marcado como o primeiro de ensino totalmente presencial. Um ano depois, cursos do CEASM como o Pré-vestibular (CPV) e o Preparatório para 6º ano e Ensino Médio apresentam bons resultados de aprovação em escolas de excelência e universidades públicas, driblando os obstáculos do ensino da pandemia e demais contextos dos jovens favelados.

Pré-vestibular aprova mareenses até fora do estado

O CPV-CEASM, após terminar o ano de 2022 com cerca de 40 estudantes, já contabiliza 17 deles aprovados em universidades públicas. São 19 aprovações, já que alguns passaram para mais de uma universidade, e dessa vez mais espalhadas pelo Rio de Janeiro e fora do estado: foram 11 aprovações na UERJ, quatro na UFRJ, uma na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), uma na Unirio, uma na PUC-Rio e uma na Universidade de São Paulo (USP). Um número marcante considerando a quantidade de pessoas que chegaram ao final do curso e os baixos números de aprovação das duas turmas anteriores, marcadas pelo ensino remoto.

Alunos aprovados conversam com a nova turma de 2023 do CPV. Foto: Raysa Castro.

As turmas de 2020 e 2021 não tiveram mais do que 5 aprovações cada uma, mas poucos alunos conseguiram se engajar nesses anos. Para o coordenador Wanderson Albuquerque, mesmo sendo poucas pessoas o resultado é gratificante, porque muitos pré-vestibulares paralisaram as aulas durante a pandemia, e o ensino remoto para quem depende da internet na favela é um grande obstáculo. A turma que participou em 2022, composta majoritariamente por jovens de 17 e 18 anos, cursando o terceiro ano do Ensino Médo ou recém-formados, vem desse contexto, e mesmo assim conquistou sua vaga. “A galera de escola pública já tem um ensino deficitário, e quando você fala de retorno da pandemia, onde podemos ter atrasado até 5 anos de ensino de escola pública, os alunos vieram com uma dificuldade maior, mas mesmo assim tivemos um resultado expressivo”, afirma Wanderson.

A motivação para não desistir

Uma dessas conquistas é a de Ana Luiza Costa, de 22 anos, moradora da Baixa do Sapateiro. Ela é uma das que não tentaram o vestibular estudando remotamente, e decidiu se dedicar ao CPV presencialmente no ano passado, sendo aprovada recentemente no curso de Comunicação Social da UFRJ. Após um ano de dedicação, a “ficha caiu” só no dia em que foi fazer matrícula na universidade, e ela conta que se sentiu realizando um sonho de criança, de fazer faculdade para trabalhar em algo que de fato gostasse. Não foi fácil conciliar estudo e trabalho, mas ela se sentiu motivada em todo o ano: “O CPV marcou essa fase da minha vida, de ter me feito acreditar no meu potencial no tempo que eu estive aqui em 2019 e agora em 2022 para alcançar esse objetivo. Sem o apoio daqui e da minha família eu ia provavelmente deixar pra lá”.

Ana Luiza Costa esperou poder estudar presencialmente para se dedicar ao ENEM. Foto: Raysa Castro.

Quem também trabalhava, estudava e ainda cuidava das crianças era a aluna Tainara Amaral, que agora já está morando em Bauru (SP) e cursando Fonoaudiologia na USP. Moradora da Vila dos Pinheiros, o curso do CPV em 2022 também foi sua primeira experiência com pré-vestibular, e não foi fácil: “Às vezes era muito difícil, eu chegava na sala morrendo de sono porque tinha ficado a madrugada inteira acordada com criança… quis desistir várias vezes”. Desmotivada, ela sequer queria fazer a prova do ENEM, apesar de ter se inscrito, e no dia foi convencida a ir. Na hora de escolher o curso, ela queria a área de saúde, e pesquisando universidades que aceitavam a nota do ENEM achou o curso de Fonoaudiologia da USP. Só depois de passar a Tainara percebeu que o curso seria no interior de São Paulo, mas com coragem e muita ajuda ela fez a mudança. Teve empréstimo e doação de mala, de roupas de frio e da própria passagem para a viagem. Agora ela está morando no alojamento estudantil do campus e se adaptando à vida universitária e à cidade.

Tainara Amaral entrou para a área da Saúde na USP de Bauru (SP). Foto: arquivo pessoal.

O ano passado também foi decisivo para Fernando Batista, morador também da Baixa do Sapateiro, de 19 anos. Agora estudante de Ciências Econômicas na UERJ, ele passou do desânimo de tentar o ENEM na época de isolamento para o total aproveitamento do curso presencial em 2022. Comparecendo a todos os aulões, aulas de campo e até ao curso de teatro, ele passou a ter certeza do que queria. Começou a se interessar pelas questões econômicas e sociais do país e se questionar como poderia contribuir para o sistema econômico ser menos excludente. A época das provas foi de muita pressão, depois da dedicação do ano todo, mas tudo deu certo. “O CPV me proporcionou muitas discussões que eu nunca tive, e isso me trouxe muito aprendizado e evolução como pessoa. Eu nem lembro da pessoa que eu era antes de entrar pro CPV”.

Fernando Batista agora cursa Ciências Econômicas na UERJ. Foto: Raysa Castro.
Crianças e adolescentes vão para as melhores escolas públicas

No ano de 2022, o Preparatório passou a ter turmas de 5º ano, que preparam para o 6º ano do Ensino Fundamental. A equipe sabia previamente que não seria fácil lecionar para essa faixa etária, mas havia a demanda de responsáveis e o curso foi preparado. Segundo o coordenador João Batista Henrique, a primeira preocupação foi de haver o cuidado com a saúde das crianças, visto o contexto ainda de pandemia, e a segunda foi montar uma grade curricular que desse conta das necessidades de cada aluno. Com 14 estudantes no final do ano, teve 3 aprovações, sendo duas para a FAETEC e uma para o Colégio Pedro II.

Manuelly Freire agora cursa o Fundamental II na FAETEC de Quintino. Foto: Raysa Castro.

Aos 11 anos de idade apenas, a aluna Manuelly Freire já se adaptou à nova rotina estudando na FAETEC de Quintino. No ano passado, ela cursava o 5º ano no Colégio IV Centenário e o Preparatório no CEASM. Em pouco tempo, ela pegou o ritmo de escola e curso: “A única diferença era nos trabalhos que a gente tinha que fazer aqui (no CEASM), na escola não tinha muito trabalho, aqui tinha Simulado, redação… mas pra mim foi tranquilo”. Segundo a mãe, a equipe do Preparatório “fez tudo”: avisou sobre as provas e depois informou sobre as aprovações, e ajudou na matrícula. Ela só teve que levar a filha para fazer a prova, que estava “muito fácil”, segundo a Manu. Agora, ela fica na FAETEC das 7h às 16h15, tendo até aula de natação na grade.

Mandar a filha para uma escola fora da Maré não foi fácil para a Renata, mas ela logo arrumou um bom esquema para conciliar com seu trabalho: conheceu mais duas mães mareenses com filhos na FAETEC e elas montaram uma escala. Assim, ela só precisa buscar as 3 crianças em dois dias da semana, e consegue que a filha estude numa boa escola. “Pra mim está sendo maravilhoso”, resumiu.

João Batista Henrique compõe a coordenação do curso, que entrevista alunos antes de iniciarem as aulas. Foto: José Bismarck.

A turma que cursaria o 9º ano, apesar de ser a faixa etária que o Preparatório contempla há mais de 20 anos, também era motivo de preocupação por causa da pandemia, segundo João Batista: “Os alunos, que já chegavam antes com bastante dificuldade, começaram a chegar com três vezes mais dificuldade. Isso levou também a equipe de educadores a ter um olhar mais cuidadoso e sensível com os conteúdos, elaborando estratégias para amenizar essa situação”. Dos 25 alunos que chegaram ao final do ano, o curso já contabiliza 18 aprovações, contemplando: Escola SESC, IFRJ, FAETEC, Colégio Pedro II, CAP-UERJ e Escola Politécnica da Fiocruz (EPSJV).

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