Orquestra da Maré é declarada Patrimônio Cultural Imaterial do Rio

Cultura, Música, Notícias

Texto por Ana Cristina da Silva.

Foto em destaque por Raysa Castro.

Da dramaticidade clássica de Mozart até a diversidade rítmica do pop funk de Anitta, a Orquestra Maré do Amanhã vem há quase 13 anos mostrando que os instrumentos de elite, como violino e violoncelo, também dialogam com as favelas. Muito conhecida dentro do território graças à qualidade no seu método de ensino musical, ela também é conhecida lá fora. Afinal, já se apresentou no Rock in Rio e no Vaticano, especialmente para o Papa Francisco. Por duas vezes foi eleita a melhor orquestra no Prêmio Profissionais da Música e, há pouco tempo, foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro. Porém, muitos nem imaginam que, tal como a música transforma caos em poesia, este projeto tão bonito surgiu a partir de uma grande tragédia.

A HISTÓRIA DE UM SONHO

A Orquestra Maré do Amanhã nasce do desejo de Carlos Eduardo Prazeres de manter viva a memória do pai, o renomado maestro Armando Prazeres. Juntos, eles fundaram e trabalharam durante anos na Orquestra Pró-Música, na missão de levar música para dentro das favelas. Chegaram até mesmo a fazer três apresentações na Maré, quando as casas ainda eram formadas por palafitas. Porém, em 1999 esse sonho foi interrompido, Armando foi sequestrado e assassinado por motivos até hoje desconhecidos. De acordo com as investigações, o seu executor morava na Maré. Carlos Eduardo não nasceu e nem se criou na favela, com tudo o que aconteceu ele poderia facilmente querer distância do lugar, mas para honrar o trabalho que seu pai fez em vida, ele voltou à Maré em agosto de 2010 e fundou a Orquestra Maré do Amanhã. 

Carlos Eduardo Prazeres sonha em transformar a Orquestra Maré do Amanhã em uma sinfônica. Foto: Raysa Castro.

“Não foi questão de coragem, eu não sei explicar. Eu precisava criar o projeto e a única referência que eu tinha do meu pai era a Maré. Eu ainda tenho esse sonho: eu posso estar ensinando música ao filho ou neto de quem assassinou o meu pai. Isso me dá muito mais alento no coração do que eu pegar uma arma para matar o cara que matou ele. Aqui eu estou mantendo o meu pai vivo”.

— Carlos Eduardo Prazeres, diretor da Orquestra Maré do Amanhã.

Ao começar do zero, Carlos buscou por pessoas que pudessem ajudá-lo com o projeto, assim encontrou os irmãos Filipe e Frederico Kochem. Juntos, eles escolheram o CIEP Operário Vicente Mariano, conversaram com a diretora sobre a proposta de ensinar música clássica para as crianças e, com a ajuda de uma doação de instrumentos musicais, deram início ao trabalho. Hoje, Filipe Kochem, de 41 anos, segue como maestro da orquestra e olha para a trajetória do projeto com muito orgulho. “A gente não tinha nem uma sala no CIEP. A gente dava aula na quadra, no gramado do Vicente Mariano. Depois evoluímos para um luxo que era um contêiner, que era um décimo do espaço que temos hoje, mas a gente achava aquilo o nosso palácio”. Segundo Filipe, o projeto começou com um pequeno patrocínio da Lamsa, mas no ano seguinte não houve renovação. “A gente ficou um ano trabalhando de graça, pagando para trabalhar. Mas aí deu certo, graças a Deus o projeto cresceu”.

Filipe largou o escritório de advocacia para seguir o sonho de Carlos, hoje é maestro e diretor artístico do projeto. Foto: Raysa Castro.

Como dizia Raul Seixas: “Sonho que se sonha junto é realidade“. Hoje em dia o sucesso é grandioso, as agendas são sempre corridas e os repertórios são diversos. Recentemente, ao tocarem no Festival Justiça por Marielle e Anderson, eles foram notados pela Deputada Franciane Motta que os tornou Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro. No entanto, o sucesso não é de agora, a orquestra já se apresentou para o presidente Lula, no Theatro Municipal; tocou ao lado de Anitta, no réveillon de Copacabana; com Gilberto Gil; e ainda apresentou um tango argentino que emocionou o Papa Francisco no Vaticano. Agora, a Camerata Jovem, o grupo de mais alto nível do projeto, vem ensaiando três vezes na semana. Afinal, do dia 10 de julho a 7 de agosto eles estarão em turnê pela Europa, onde irão se apresentar na Inglaterra e em Portugal. “A gente está indo no período da Jornada Mundial da Juventude. A nossa ideia é tentar um novo encontro com o Papa”, explica Carlos. Um de seus desejos é que o Papa Francisco abençoe a orquestra e a favela da Maré. 

COMO FUNCIONA

Com a sede localizada na rua da Proclamação, próximo ao Morro do Timbau, o projeto atua em 22 espaços da Maré. São 6 creches, 13 Espaços de Desenvolvimento Infantil (EDI) e 2 escolas municipais. A proposta é ensinar e alfabetizar crianças musicalmente, para que quando tiverem o domínio de seus instrumentos possam ensinar outras crianças. Tendo se iniciado em 2010, hoje em dia o projeto já conta com mais de 40 alunos que se tornaram professores. “Eles ensinam ritmo, afinação, notas musicais e vão percebendo, de 4 a 6 anos, quem daquelas crianças tem vocação para música. Esses que demonstram vocação a gente tenta direcionar para as duas escolas que a gente tem orquestra: a Bartolomeu Campo de Queiroz e a Medalhista Olímpico Lucas Saatkamp”, explica Carlos Eduardo.

David Vicente é um dos grandes exemplos de transformação da Orquestra Maré do Amanhã. Apesar de não morar mais na Maré, ele foi criado na Baixa do Sapateiro e estudava no CIEP Vicente Mariano quando Carlos Eduardo deu início ao projeto. No entanto, David não tinha o menor interesse por música, mas passou a frequentar as aulas do projeto para assistir seus amigos de classe e quando viu já estava fazendo parte daquilo. “Me aprofundei mais, meus amigos se aprofundaram mais. Eu também era criança na época, mas comecei a ensinar uma galera mais nova do que eu e aí eu tomei esse gosto específico por lecionar, por ensinar violino”, conta o mareense de 24 anos. 

David diz que o projeto salvou sua vida ao fazer com que ele deixasse as ruas para estudar violino. Foto: Raysa Castro.

“A gente foi se formando, fizemos o curso do Suzuki. Fomos para São Paulo, Gramado, recebemos professores muito renomados aqui na nossa sede para ensinar a gente. Esse processo funcionou super bem, hoje pelo menos umas 15 pessoas dessa primeira geração são professores e lecionam. Graças a isso a gente consegue atingir toda a Maré. Contamos hoje com mais de 4 mil alunos no projeto, um número bastante surreal, mas a ideia é que ele se multiplique cada vez mais, porque se com 40 professores a gente consegue fazer 4 mil, imagina o que a gente vai conseguir fazer com esses 4 mil.”

— David Vicente, integrante do projeto.

A Orquestra Maré do Amanhã atende uma faixa etária que vai dos 4 aos 25 anos de idade. Para fazer parte do projeto a criança precisa estudar em um dos 22 espaços de ensino que eles atendem. Até os 6 anos de idade a educação musical acontece nas creches e Espaços de Desenvolvimento Infantil, onde os alunos mais antigos do projeto ensinam o que aprenderam ao longo dos anos. Nas duas escolas fundamentais onde se tem orquestras infanto-juvenis, as crianças são observadas. Aquelas que se sobressaem são encaminhadas para a sede e passam a compor a Camerata Jovem, o grupo profissionalizante do projeto. Ali, cada integrante recebe atendimento psicossocial e uma bolsa de R$ 700. Por se tratar de uma orquestra jovem, o limite de idade para participar do projeto é de 25 anos. “A camerata são os que já estão com a gente há mais tempo, tem até alguns fundadores. Mas na camerata já tem gente muito novinha. A gente tem que trazer o grupo mais novo para praticar junto com a camerata. Eles vão para as principais apresentações”, explica o Maestro Filipe.

É graças a esse plano rotativo no grupo principal que Stephany Grativol fará a sua primeira viagem para fora do país, já que participará da turnê pela Europa. A moradora do Morro do Timbau está há quase seis anos na orquestra, o interesse pelo grupo surgiu ainda quando criança, ao assistir apresentações de sua tia que também integra o projeto. No entanto, diferente da sua tia, Stephany não deu certo com o violino, mas logo descobriu sua paixão e aptidão para o violoncelo. Para além das aulas, Stephany ensaiava toda quarta e sexta, agora com a turnê, passou a ensaiar com a camerata também às segundas-feiras. “É a primeira oportunidade que eu tenho de ir para outro país, de tocar numa apresentação bem maior do que as outras, com uma importância maior.  Estamos bem esperançosos de que vai ser uma coisa muito boa pra gente. Estamos animados e ensaiando bastante”, conta a violoncelista de 17 anos.

Stephany Grativol é violoncelista e se expressa através da música. Foto: Raysa Castro.

Diferente de 2010, hoje a Orquestra Maré do Amanhã conta com um espaço amplo para ensinar seus alunos. Eles recebem aulas práticas e teóricas de música, mas também contam com aulas de cidadania, recebendo explicações sobre os lugares que irão e quem eles representam. Com o apoio de patrocinadores, o projeto faz a compra de todos os instrumentos: violinos, violas, violoncelos, flautas, contrabaixos e demais instrumentos de percussão, como chocalhos e triângulos. Os alunos recebem aulas de como cuidar destes instrumentos e quando são conscientizados recebem autorização para levá-los para casa. Apesar de todas as grandes realizações ao longo destes quase 13 anos, o crescimento é contínuo. Em breve a sede irá se expandir com a aquisição de um novo espaço. “A gente vai ganhar essa igreja aqui do lado, aí vai ampliar e vai dar pra fazer um palco que caiba uma orquestra sinfônica. No momento a gente só tem uma orquestra de câmara e com flauta”, conta o diretor. 

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