Estilista Betto Gomes, da Vila do João, lança coleção sobre pescadores da Maré

Cultura, Geral, Notícias

Por Carolina Vaz

Foto de capa: Raysa Castro

Em cada rua, em cada beco, em cada esquina da Maré tem algo de mágico acontecendo: uma personalidade, um trabalho que vai fazer a felicidade de outras pessoas, sem a gente ter a dimensão disto. E não é diferente na esquina da Canal 2 com a Rua 10, na Vila do João, onde fica o ateliê do estilista Betto Gomes, de 36 anos. Com quatro costureiras além dele próprio, a partir de tecidos não utilizados de grandes marcas vendidos a preços menores, daquele ateliê saem roupas e sapatos que vestem atores e atrizes globais, rainhas de bateria, cantores em programas de TV. De um ano para cá, Betto Gomes decidiu valorizar suas origens e produzir, em sua marca, peças que referenciam a Maré, como a recente Maré de Peixe, lançada em 20 de dezembro no Tau Bar Club, em Copacabana.

Modelos com peças da Maré de Peixe em lançamento. Foto: arquivo pessoal.
Da Vila do João para todo o Rio de Janeiro

É no meio de algumas máquinas de costura, tesouras, centenas de botões, etiquetas, agulhas de crochê, tecidos e retalhos, que a pequena equipe de Betto produz para duas finalidades. Uma é a marca Betto Gomes, na qual todas as peças são desenhadas por ele a partir de suas criações, e a outra é o ateliê Betto Gomes, onde eles recebem encomendas diversas: roupas para novelas, participação de artistas em eventos especiais, customização de abadás, etc. Um dos atores que mais vestem roupas do ateliê é José Loretto. Muitas das peças do Betto foram vistas também na novela Todas as Flores, vestindo os candidatos do Concurso Garoto Rhodes.

O ator José Loreto vestindo Betto Gomes na revista Vogue, em março de 2023. Foto: André Hawk.

As peças produzidas ali são únicas ou têm poucas unidades, exatamente porque uma das características é a compra de tecido excedente de outras marcas, que não vem em grande quantidade. A equipe trabalha com demandas exaustivas e, muitas vezes, curto prazo de entrega, tendo já trabalhado até a meia-noite de um domingo para terminar uma encomenda. Para amenizar toda essa tensão, eles tentam criar um ambiente acolhedor, de amizade, com televisão, geladeira, café e momentos de lanche coletivo. “Eu tenho um time, e esse é o nosso grande diferencial”, afirma Betto.

Da esquerda para a direita: Maria Ivonete do Nascimento, Betto Gomes, Carolina Carneiro, Maria Vitória da Silva, Edileuza Alves da Silva e Luciana Miranda. Foto: Raysa Castro.
Equipe concilia as demandas de produção, hoje já para o Carnaval, com a socialização. Foto: Raysa Castro.

As conquistas do Betto são, como da maioria dos mareenses, fruto de um sonho compartilhado. Seu ateliê é a casa onde ele cresceu com os pais, a irmã e o irmão, e após todos os filhos saírem de casa o pai transformou uma parte dela em kitnets que ele alugava. Ele acreditou no sonho do filho, que durante a pandemia começou as obras transformando as kitnets no ateliê. Estando já há alguns anos conquistando clientes no centro da cidade e tendo até morado em Sâo Paulo, Betto achou que seria mais difícil conseguir mão de obra, mas se enganou: encontrou ótimas profissionais, quase todas mareenses, com quem pôde aperfeiçoar o trabalho para atender as características de suas peças. Hoje ele percebe que nunca havia imaginado essa possibilidade: “A rua onde eu cresci é, hoje, um ambiente de trabalho”.

Mas, na verdade, foram necessários bons anos para Betto tomar a atitude de produzir na Maré. Ele começou na moda logo no início da vida adulta. Procurando uma faculdade no ramo da arte, ele um dia viu um banner da Estácio sobre o curso de moda, na época coordenado pelo Instituto Zuzu Angel, e se interessou. Conta que entrou lá sem saber quem era Coco Channel (estilista francesa famosa no século XX), mas logo se destacou e começou a ir atrás das oportunidades. Trabalhou com estilistas da semana Fashion Rio, participou de concursos de novos estilistas tanto de revistas quanto de marcas, e nos anos 2010 colocou suas peças num desfile pela primeira vez. Em 2011 participou do reality Estilista Revelação no programa Xou da Xuxa, no qual ficou em terceiro lugar e ganhou grande visibilidade.

“A Xuxa comprou o meu diploma! Ela falou que eu era estilista e ninguém duvida disso”, ele conta bem-humorado, acrescentando que logo após o reality ele começou a ser procurado por artistas para produzir roupas exclusivas, aumentando sua cartela de clientes. Mas ele deu uma pausa nesse ritmo para entrar na educação: foi convidado a dar aula de moda, atuando em instituições como a FAETEC e o Senac Rio, e decidiu até se aprimorar com cursos de pós-graduação.

O estilista mareense

Dez anos após o reality com a Xuxa, uma nova oportunidade na Globo despertou algo no Betto: um novo reality, o Academia da Moda, dentro do programa É de Casa. “Nesse momento eu percebi que a Globo me chamou porque eles tinham um título pra mim: ‘o estilista da Maré'”, ele conta.

Isso deu um “click” no Betto. Ele não havia esquecido que era da Maré, não teria como esquecer, pois desde a faculdade ele convivia com pessoas que vinham de realidades mais privilegiadas. Mas até então, para ele, não era uma bandeira que queria levantar: “Eu não queria me vitimizar. Porque tem tudo aquilo que vem por trás quando você fala que é da Maré”. No entanto, se ele era “o estilista da Maré”, o que começou a fazer sentido para ele foi levar sua produção e sua criatividade para a Maré. Foi quando decidiu abrir o ateliê lá, na Rua 10.

“Eu lembro quando aqui na frente era um canal mesmo, tinha barquinho, e eu lembro que eu catava conchinha até a Praia do Fundão, não havia essas casas, o Fogo Cruzado… eu cresci nessa lembrança”.

Betto Gomes, estilista natural da Vila do João

Desde então, as suas coleções de verão falam sobre a Maré. A primeira, em 2022 (verão de 2023), chamava-se apenas Maré, e referenciava o tempo das palafitas, os manguezais, caranguejos, o lúdico das primeiras décadas da favela. Na mais recente, Maré de Peixe, o peixe e os pescadores são os temas centrais. Tudo isso faz parte da história do Betto: seu pai, paraibano, chegou na Maré e construiu seu primeiro barraco na Nova Holanda com caixas de transporte de bacalhau, pois trabalhava no porto do Rio.

Para essa coleção, o time do Betto foi até a colônia de pescadores da Kelson’s, conversou com os pescadores, ele desenhou as roupas a partir dessa inspiração e a equipe confeccionou. A Kelson’s foi, também, um dos cenários das fotos oficiais (o editorial) da coleção, assim como o CEASA, onde o peixe é comercializado. Em meio à beleza das peças, já reproduzidas em revistas como a estadunidense Style Cruze e a holandesa Selin Magazine, Betto também considera a coleção uma denúncia socioambiental sobre uma colônia de pescadores que resiste em meio à poluição e à precariedade. Tendo se tornado há alguns meses conselheiro da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), ele ainda pretende levar as demandas dos pescadores para autoridades que possam promover melhorias nos espaços de trabalho desses pescadores.

Fotos oficiais da coleção foram tiradas na Kelson’s. Foto: Dom Barriolo.
O vestido que remete a uma rede de pesca foi vestido pela influencer Manuela Ornelas para as fotos oficiais. Foto: Raysa Castro.
Uma das peças de Maré de Peixe é o vestido de noiva que referencia Iemanjá. Foto: Raysa Castro.

Ateliê sustentável

Betto Gomes considera seu espaço o primeiro ateliê sustentável de moda da Maré. Não apenas porque compra os tecidos excedentes de outras marcas, mas também porque não joga seu próprio excedente no lixo, enviando para cooperativas. Considera sua marca slow fashion, justamente por não ter um processo de produção industrial que fabrica centenas ou milhares de uma mesma peça. Na verdade, é só uma ou algumas daquele design, e geralmente com uma modelagem ampla e agênero (as peças não definem o sexo de quem irá usá-las).

Hoje, o trabalho de Betto pode ser acompanhado no Instagram (@bettogomesoficial) e algumas de suas peças podem ser encontradas à venda na Mô Colab na Av. Nossa Sra. de Copacabana, 300, loja B, em Copacabana, e também na loja do Coletivo Fênix na Rua Pascoal Carlos Magno, 100, Santa Teresa. O showroom do Betto, onde ele recebe clientes, fica no centro do Rio: rua Buenos Aires, 93, sala 715.

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