Marielle Vive: evento do Wikifavelas debate mulheres negras na política

Geral, Memória

Por Carolina Vaz

Foto de capa: José Bismarck

Há quatro anos, era lançada uma iniciativa inédita na Biblioteca de Manguinhos na Fiocruz: o Dicionário de Favelas Marielle Franco, uma plataforma wiki para produção de conhecimento sobre favelas e periferias. Na ocasião, contou com a presença da família de Marielle Franco, que tinha sido colaboradora do dicionário. Na última segunda-feira (13), o Dicionário de Favelas promoveu o evento Marielle Vive! Favelas na reconstrução do país, no mesmo local, em memória de Marielle e da necessária resolução de seu assassinato, em 14 de março de 2018. Com duas mesas de debate, uma exposição de fotografias e atividade cultural, o evento reuniu dezenas de pessoas que, tal como numa rede, já foram conectadas a Marielle seja pela militância, pela atividade política ou pela vida pessoal.

A memória que faz lutar pelo futuro

A mesa de abertura contou com representações do Dicionário de Favelas e da Fiocruz, tendo como mediadora Sônia Fleury, coordenadora do Dicionário, a qual destacou que o evento deveria ser para olhar pra frente, para um futuro em que a população de favelas e periferias esteja disputando o poder, como fez a vereadora. “Marielle é a representação icônica dessa nova política”, afirmou. Quem também levantou essa perspectiva foi a coordenadora do Museu da Maré Cláudia Rose, que trouxe suas lembranças pessoais da convivência com Marielle desde a juventude, e destacou o impacto de sua perda para a Maré e para todos que a conheciam. Uma perda que foi, também, motor para a mudança dos espaços de poder, e que agora fortalece a continuidade da luta reconhecendo que ainda se vive num país dividido. Ela ressaltou que é preciso continuar travando embates, porque nos embates a história se move, e as favelas precisam disputar seus direitos dentro da cidade. “A gente não vai desistir, esse momento é para ganhar força”.

Mesa de abertura com Richarlls Martins, Cláudia Rose, Sônia Fleury e Rodrigo Murtinho. Biblioteca de Manguinhos, ICICT, Fiocruz.
Da esquerda para a direita: Richarlls Martins, Cláudia Rose, Sônia Fleury e Rodrigo Murtinho. Foto: José Bismarck.

A gente está aqui pra lutar e seguir os passos da Marielle, que era uma mulher da favela, era uma mareense, foi ali que ela nasceu, que ela cresceu, tudo que ela caminhou… eu conheci Marielle adolescente, porque a gente participava da igreja católica e depois foi uma alegria rever Marielle lá no CEASM se inscrevendo pro pré-vestibular.

Cláudia Rose

A mesa contou ainda com falas de Cristiani Machado, vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, que ressaltou a importância do Dicionário de Favelas e a honra da Fiocruz de sediar o projeto; Richarlls Martins, coordenador do Plano Fiocruz de Enfrentamento à Covid-19 , que lembrou do jeito alegre e animado de Marielle; e Rodrigo Murtinho, diretor do ICICT, que comentou o assassinato de Marielle e Anderson há cinco anos e afirmou que, se era para ser um silenciamento, causou o efeito contrário.

As barreiras para as mulheres negras na política

A segunda mesa, também com a mediação de Sônia Fleury, teve em sua maioria falas de mulheres que ocupam ou já ocuparam o espaço legislativo. A primeira foi a deputada estadual Renata Souza (PSOL), que iniciou sua fala caracterizando o assassinato de Marielle como um feminicídio político. Significa, segundo ela, um ataque contra mulheres que ousam desafiar o poder, como aconteceu também com outras militantes como a missionária Dorothy Stang e a juíza Patrícia Acioli. A própria Renata, após se tornar deputada, sentiu as barreiras que existem no espaço legislativo: foi barrada em projetos que escreveu, assim como na execução da presidência da Comissão de Direitos Humanos, e até vítima de um pedido de cassação, apoiado pelo ex-governador Wilson Witzel. A deputada também comentou a necessidade de continuar a disputar a política, principalmente no estado do Rio, onde foi eleito o governador que tem como prática promover chacinas nas favelas.

Vereadora Mônica Cunha e deputada estadual Renata Souza.
Da esquerda para a direita: Monica Cunha, Renata Souza e Sônia Fleury. Foto: José Bismarck.

A ex-deputada Mônica Francisco também reconhece os obstáculos que permanecem no presente, apesar de se ter elegido o presidente Lula. Para ela, um dos maiores desafios é a representatividade, fundamental para resolver os principais problemas da sociedade brasileira, uma vez que são as mulheres negras que conhecem as grandes mazelas sociais como a fome, desemprego, a vida nas favelas, a vida em situação de rua. A ex-assessora de Marielle afirmou ainda que em 2017 a própria presença de Marielle significava uma ameaça ao poder – dos homens brancos principalmente – na Câmara dos Vereadores.

Monica Cunha, Renata Souza, Sônia Fleury, Saulo Benicio e Mônica Francisco na Biblioteca de Manguinhos, ICICT, Fiocruz.
Da esquerda para a direita: Monica Cunha, Renata Souza, Sônia Fleury, Saulo Benicio e Mônica Francisco. Foto: José Bismarck.

Essa presença ameaça, segundo Monica Francisco, porque representa um corpo coletivo. Por isso mesmo que a vereadora Monica Cunha (PSOL) fez questão de tomar posse “de bonde”, levando com ela para esse espaço público outras mulheres negras e dezenas de militantes. Isso porque Marielle Franco lhe ensinou que não podia ser uma só, que precisava sempre levar outras junto. “Quem estava entrando era uma mulher preta que [parecia que] estava escrito na testa ‘Mãe de bandido’ mas que foi votada para estar ali”, afirmou. A vereadora estava, no dia de sua posse, também trajada com a foto de seu filho, Rafael Cunha, morto por um policial civil aos 20 anos, e afirmou que, quando ela vai ao púlpito da Câmara, ela vai para honrar Rafael e Marielle.

A fala de Mônica trouxe à tona a questão da vida do jovem negro favelado e de periferia, principal alvo da polícia no Rio de Janeiro, e deu lugar à fala de Saulo Benicio, presidente do PSOL Nilópolis. Ele é, também, aluno cotista do curso de História da UERJ e entregador de aplicativo, e falou das poucas perspectivas que um jovem negro periférico da Baixada tem como trabalho. Benicio passou por experiências de precarização como mototaxista e como entregador, e destacou ser essa falta de opções dignas de trabalho uma continuação da escravização iniciada séculos atrás: “Hoje a gente ainda se vê acorrentado pelo genocídio, pelo aprisionamento, pelo desemprego”.

Fotografia popular ocupa a Fiocruz

O evento marcou, também, a inauguração da exposição Outras Marés, um conjunto de 33 fotos de 11 membros do Coletivo Fotografia Periferia e Memória. A exposição, que vai ficar aberta ao público pelo menos até abril, mostra cenas, rostos, paisagens de espaços populares como Maré, Morro da Providência e Complexo do Alemão. Estavam presentes vários dos expositores, a exemplo de João Roberto Ripper e Kita Pedroza. Segundo o curador, Dante Gastaldoni, apesar de o coletivo existir desde 2015, a exposição nasceu em 2021, pensada para o SESC Santa Rita, em Paraty, e o nome está ligado a ser uma exposição itinerante e que vai se adequando aos espaços que ocupa: “Se tem uma coisa que é previsível, é a Maré oceânica, e se tem uma coisa que é imprevisível é a maré da favela. Ainda mais numa exposição que se modula, como água, a cada litoral, a cada praia”.

Fotos da exposição Outras Marés na Biblioteca de Manguinhos, ICICT, Fiocruz.
Exposição levou obras de 11 fotógrafos e fotógrafas. Foto: José Bismarck.
Fotógrafos do Coletivo Fotografia Periferia e Memória em inauguração da exposição Outras Marés na Fiocruz.
Da esquerda para a direita: AF Rodrigues, Dante Gastaldoni, João Roberto Ripper, Léo Lima e Elisângela Leite. Foto: José Bismarck

A exposição traz algumas características, como a priorização das imagens de favelas, e o fato de só ter fotos coloridas, que foi uma exigência do curador. Para ele, se era para representar as favelas as fotos tinham que ter cor e ter vitalidade, sem representar violência, tristeza e outras mazelas que reforçam preconceito. O conceito da fotografia popular foi explicado por Ratão Diniz, fotógrafo mareense que contou do seu desejo desde muito jovem de contar a história do seu espaço pela sua própria visão, e ajudar a construir a memória afetiva do lugar: “Para mim a fotografia popular está muito nessa questão do desejo de contar sua própria história, do querer fazer acontecer”.

Rachel Barros em performance na Biblioteca de Manguinhos, Fiocruz.
O evento ainda teve apresentações culturais como da artista e ativista Rachel Barros. Foto: José Bismarck.

Em entrevista, Sônia Fleury comentou que o evento foi pensado tanto para marcar os 5 anos do assassinato destacando que não há resolução final sobre o caso, como também para ser um momento de reflexão nessa conjuntura política do país dividido, havendo muitos partidários da direita radical no poder. Teve, ainda, uma composição de representantes da política e da produção acadêmica, como era também a identidade da Marielle. Por isso o nome Marielle Vive: “É a ideia de que a Marielle já ajuda a reconstruir esse país. Por ela ter existido, por tudo que ela significa na política brasileira e até internacional”.

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