Museu da Maré faz lançamento de seu acervo online; consulta permite conhecer histórias dos moradores

Cultura, Memória, Notícias

Por Carolina Vaz

Foto de capa: Ana Cristina da Silva

O que significa uma mesinha de cabeceira num museu? Depende da história daquela mesinha e depende do museu. Para o Seu Alceu José da Silva, uma mesinha de cabeceira, preservada há mais de 40 anos, foi o primeiro móvel de uma família de 13 pessoas que tinham vindo para a Maré nos anos 1950, saindo do interior do estado. A mesinha – na verdade a imagem e suas informações – agora estão disponíveis no acervo online do Museu da Maré lançado na última terça-feira (12) na galeria do Museu. E o Alceu, ou Teteu, é um dos amigos do Museu, uma pessoa presente nos 17 anos de história, o que prova sua relevância como doador de um objeto para o espaço.

Foi reunindo amigos moradores, pesquisadores e outros interessados no tema que o Museu da Maré lançou a versão online de seu acervo. O evento foi prestigiado por autoridades como o diretor do Museu da República Mario Chagas e a diretora do Departamento de Processos Museais do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Mirela Leite de Araujo. A abertura do evento aconteceu com a exibição do curta O Casamento na Palafita, mostrando um dos trabalhos do grupo de contadores de histórias.

Mais de 1000 itens disponíveis

O arquivo online é fruto de um trabalho de muitas pessoas, por mais de um ano, para catalogar centenas de objetos e arquivos presentes no Arquivo Dona Orosina Vieira (ADOV). No site podem ser encontrados os acervos iconográfico, com 570 fotografias de 12 diferentes instituições; museológico, com 639 objetos; cartográfico, com 18 mapas da Maré e seu entorno; e uma parte do acervo bibliográfico com 4 livros do CEASM. Os itens estão indexados por temas, décadas, referência geográfica, acervo, doador, entre outros filtros. Com essa iniciativa, o Museu se torna um dos primeiros museus comunitários a realizar tal organização e divulgação, facilitando que pesquisadores encontrem itens desejados online enquanto valoriza a história pessoal por trás de cada objeto.

Imagens antigas da Maré foram obtidas de fontes como o Arquivo Nacional.

Antônio Carlos Pinto Vieira, pesquisador da equipe do Museu e um dos registradores de itens no site, comentou a importância de dar o devido valor a objetos que contam a história da comunidade e das vidas que compõem essa Maré: ” É muito importante a gente dar esse tratamento e essa qualidade a esse tipo de acervo que foi tão relegado, desprezado, e tem que ser reposicionado dentro de uma visão de arquivos e de memória nacional”. Um trabalho que está só começando porque, somente no acervo iconográfico, são mais de 5.000 imagens.

O diretor do Museu da República Mario Chagas comentou a alegria de estar presente em mais uma inovação do Museu, como esteve em tantos outros momentos, e falou da possibilidade de a equipe ensinar o manuseio da plataforma utilizada, o Tainacan, a outros museus sociais. Para ele, o evento foi uma celebração dos 20 anos da Politica Nacional de Museus, da qual o CEASM participou, sendo assim um dos motivos de sua existência. “Esse museu é construtor de política pública, ele é inspirador de política pública”, afirmou.

Segundo Mirela de Araujo, a ação coloca o Museu da Maré na vanguarda da museologia, como já esteve em várias ocasiões: “Colocar todo o acervo online é aumentar o seu território, é expandir, e a gente acompanhou toda a luta que foi para vocês se firmarem nesse território. (…) O Museu está sempre na vanguarda e eu acho incrível como a coisa nova a fazer sai daqui do Museu da Maré”.

Mirela de Araujo, representante do Ibram, parabenizou o Museu por estar na vanguarda da museologia. Foto: Ana Cristina da Silva.
Intenso trabalho de higienização, registro fotográfico e catalogação

Quem contou mais detalhes da formação do acervo foram Ole Joerss e a conservadora e restauradora Thamires Ribeiro. Segundo ela, o trabalho das fotos começou durante a pandemia, quando o Museu estava fechado para o público e a equipe começou a limpar os objetos, e nessa limpeza se decidiu também fotografar. Aos poucos foi se construindo toda a base de dados que hoje descreve cada objeto no acervo online. A equipe ainda pretende escrever um artigo sobre a metodologia aplicada e publicar em 2024.

A conservadora e restauradora Thamires Ribeiro contou mais sobre a formação do ADOV e a digitalização. Foto: Ana Cristina da Silva.

Ainda sobre futuro, Antônio Carlos comentou que será formado um quinto acervo, composto por mais de 800 itens bibliográficos, incluindo os presentes no ADOV e trabalhos acadêmicos sobre a Maré. Além disso, já foi estabelecida parceria com o centro cultural Casa do Povo e a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) no projeto “Favelas.Br: Arquivos Digitais Periféricos e Educação Patrimonial”. O Museu também irá participar do programa Modern Endangered Archives Program da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), avançando no processo de digitalização.

O valor dos objetos históricos

Ainda durante o evento, houve depoimentos de pessoas que doaram objetos para o Museu, como o Teteu, que comentou a importância da mesinha de cabeceira para ele: Quando o móvel chegou, esse foi o primeiro móvel que chegou na minha casa. Eu me emociono porque a minha mãe tinha um ciúme desse móvel… toda hora ela abria, toda boba”.

O morador Teteu comentou um dos objetos que doou e estão online: a mesinha de cabeceira de sua família. Foto: Ana Cristina da Silva.

Quem também foi falar de seu objeto presente no acervo foi Marli Damascena, uma das responsáveis pelo ADOV, apresentando uma cadeira de fórmica, verde, que hoje se encontra na exposição de longa duração do Museu. Pertencia à sua mãe, há muitos anos, e por isso é tão importante: “Vendo a cadeira ali eu fico emocionada toda vez, porque minha mãe morreu muito cedo, com 36 anos, e pra gente que é pobre o móvel é a vida toda”.

Marli Damascena, além de guardiã dos arquivos do ADOV, também doou objetos ao acervo. Foto: Ana Cristina da Silva.
Iniciativa exemplar

Quem aprendeu muito com as explicações da equipe, e quer aprender ainda mais a tornar um acervo online, foi o Mestre Paulão Kikongo, um dos gestores do Iê – Museu Vivo de Arte e Cultura da Capoeira, sediado em Guapimirim. Eles possuem lá mais de 30.000 fotografias digitais, 20.000 fotografias analógicas e mais de 12.000 livros na Biblioteca Comunitária Francisco da Silva Siríaco. O grupo já utiliza o sistema Tainacan para catalogar os livros, mas ainda não está online. Para ele, esse é um movimento muito importante para mostrar o volume de produção sobre o tema, e Paulão elogiou a iniciativa do Museu: “Eu acho que o Museu da Maré, como um museu de território, é super importante não só para a preservação das memórias locais mas também para ecoar para outras comunidades essa importância”.

Mestre Paulão Kikongo visitou o Museu pela primeira vez. Foto: Ana Cristina da Silva.

Para Henrique Porto, estudante de Museologia na Unirio e membro da diretoria do Museu de Favela, um dos pontos mais importantes dessa digitalização é a valorização da memória local, como se valoriza a memória de “autoridades” nos museus considerados clássicos. “Durante muito tempo os museus clássicos sempre puderam contar a história de uma parcela da população, seus objetos sempre estiveram muito bem representados, um leque de ouro, penas… e agora, é a gente criar as nossas próprias ferramentas pra falar da gente. A gente vai trazer a cadeira da Marli, a gente não vai falar da cadeira do Dom Pedro”, afirmou.

Para o estudante Henrique Porto, a iniciativa pode motivar ainda mais visitas presenciais no Museu. Foto: Ana Cristina da Silva.
Acesse também

O Museu da Maré lançou, ao mesmo tempo, seu site institucional e o site destinado apenas ao acervo. Para conferir, acesse:

Site do Museu da Maré: https://www.museumare.org/

Site do acervo: https://arquivomuseudamare.org/

Equipe do Museu e amigos que marcaram presença. Foto: Ana Cristina da Silva.

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