Espetáculo Tranca-ruas, do Entre Lugares, atrai centenas para apresentações na Maré e em Vista Alegre

Cultura, Notícias

Por Carolina Vaz

Foto de capa: Ana Cristina da Silva

Era 14 de dezembro, sete horas da noite, e todo mundo esperava no pátio do Museu da Maré a hora de fazer o que se faz pra assistir uma peça de teatro: ver o portão abrir e então ocupar os lugares, com assentos enfileirados. Mas nesse dia foi diferente, pois a estreia de “Tranca-ruas: sete caminhos para o abre-alas” já começou com todo o elenco surgindo dos fundos do Museu da Maré, tal qual uma escola de samba, com bateria, rainha, princesas e musa, animando o público e conduzindo aos lugares dispostos no galpão formando 4 triângulos e no meio de uma grande encruzilhada. Foi assim que começou a temporada do 10º espetáculo do Entre Lugares Maré, curso de teatro sediado no Museu que forma atores e atrizes há 11 anos. As apresentações aconteceram no Museu do dia 14 ao dia 17, e no dia 20 de dezembro na Areninha Cultural João Bosco, em Vista Alegre.

Katia Deusa foi uma das princesas da escola de samba. Foto: Ana Cristina da Silva.

A dramaturgia é um texto assinado por Pablo Marcelino e Pedro Emanuel, construído a partir de cerca de três meses de encontro da oficina “Pesquisa de campo / leitura e escrita”, na qual se trabalhou obras de autores como João do Rio, Geovani Martins e Renata Souza. O texto pronto foi trabalhado pelos diretores Renata Tavares e Tiago Ribeiro, e pela diretora de movimento Gabriela Luiz com o corpo de artistas.

As histórias dos caminhos

Tranca-ruas é um espetáculo composto por sete cenas que se conectam, sempre misturando os sentimentos e eventos que perpassam o cotidiano da favela: alegria, diversão, amor, medo, terror, proteção. Logo numa das primeiras cenas, a criança protagonista que se mostra tão empolgada porque no dia seguinte, um dos dias do Carnaval, seria montada uma piscina na sua rua, tem a diversão – e a própria vida – interrompida por uma operação policial. É quando se ouve o primeiro “Laroyê”, saudação a Exu, que acompanha toda a peça. Cena após cena, representações de Exu mostram novos caminhos que se abrem, sempre no tempo do Carnaval. A segunda história traz o retorno à Maré de Saphira, estilista que construiu carreira mundo afora e volta após o falecimento do pai. É quando se depara com as memórias de um pai que não aceitava sua identidade como mulher trans, mas que também lhe ensinou o amor pelo samba, em especial a escola Estação Primeira de Mangueira.

Sheilla Cintra interpreta a irmã de Maria, criança assassinada pela polícia numa festa de carnaval na favela. Foto: Ana Cristina da Silva.
A cena de Saphira com o pai, que não aceitava sua identidade de gênero, mistura memórias, saudade, rancor e resiliência. Foto: Ana Cristina da Silva.

Em seguida, acompanhamos a saga de Camila, Isa e Iara para aproveitar o último dia de Carnaval em paz diante de assédios e ameaças, mas acabam contando com a proteção de Maria Mulambo. O próximo enredo mostra um dilema típico de favela: um grupo que tenta organizar uma festa de Carnaval no bar local, e um grupo de cristãos que tentam fazer os foliões desistirem, até todos perceberem que estão no mesmo barco. Em seguida, presenciamos o nascimento de um “amor de Carnaval”, o romance entre Gisele e Yasmin, que passa por altos e baixos por décadas até lugares de sucesso na maturidade.

Camila, Isa e Iara se veem sob risco no último dia de Carnaval. Foto: Ana Cristina da Silva.
Um dos caminhos que retratam bem a diversidade da favela é o embate entre cristãos e foliões. Foto: Ana Cristina da Silva.
O romance entre Yasmin e Gisele é um dos últimos “caminhos” do espetáculo. Foto: Ana Cristina da Silva.

Tudo isso acontece com música ao vivo, muitos efeitos sonoros e um jogo de luz que direciona o olhar do espectador para onde a cena acontece, uma vez que os atores e atrizes entram e saem de cena passando pelos 4 caminhos delimitados no chão e nunca se ausentam do palco. Quem é protagonista numa cena pode ser, na próxima, parte de um bloco de carnaval, passageiro de um ônibus lotado, uma banhista na praia, narradora ou “contrarregras” que empurra, gira, trava e destrava o platô móvel que faz o palco de Tranca-ruas. Ao final, a mesma escola de samba que encaminhou o público para o galpão também o leva para fora, mantendo o clima de festa.

Atores se juntam à banda – que se torna bateria – em alguns momentos do espetáculo. Foto: Ana Cristina da Silva.
O Carnaval e os corpos nas ruas

Segundo Pablo Marcelino, o projeto do espetáculo anual do Entre Lugares teve como ponto de partida parte de sua pesquisa de Iniciação Científica no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua pesquisa consiste em analisar como a diversidade de corpos na cidade é representada na literatura brasileira, e foi fazendo esses debates nas oficinas, assim como as leituras, que se chegou a alguns dos personagens. Segundo ele, o resultado final dialogou com a ideia inicial, mas ao longo do ano muitas mudanças foram incorporadas. Ele utilizou, principalmente, a obra “A Alma Encantadora das Ruas”, de João do Rio, escrevendo os narradores, e dialogando com Pedro Emanuel este deu a proposta de os narradores se tornarem Exus; a partir daí toda a caracterização dos mesmos foi feita pelos diretores, no processo de leitura com o grupo. “Notei que embora tenham ocorrido mudanças, bastante significativas até, a proposta inicial que foi falar sobre a representação de corpos em meio à cidade, contudo em contexto de carnaval, foi respeitada”, comentou.

Desde o início o espetáculo foi pensado para se passar no Carnaval. Foto: Ana Cristina da Silva.

Essa é a primeira vez que o Entre Lugares apresenta um espetáculo tão focado na ancestralidade, o que foi um grande desafio para a diretora de movimento Gabriela Luiz. Segundo Gabriela, para fazer Tranca-ruas, na Maré, foi preciso fazer uma dupla pesquisa: sobre as pessoas da Maré, para trazer familiaridade, e também sobre o povo de rua: “Começamos a trabalhar com os Exus que a gente conhece como catiços, que são os mais próximos da gente enquanto humano. Os trejeitos, como anda, como se movimenta, como trabalha em terra”. Ela explicou ainda que fez duas imersões com os alunos, num exercício de escuta do próprio corpo, como parte dessa preparação. Todo o trabalho de corpo que se vê no espetáculo vem desse objetivo de conectar cotidiano e ancestralidade nas histórias representadas.

A diretora de movimento Gabriela Luiz considerou um presente trabalhar um texto que mergulha nas divindades de terreiro. Foto: Ana Cristina da Silva.

Ator do projeto há 8 anos, Roger Neri sentiu uma grande responsabilidade para interpretar Tranca-rua na peça, inclusive por ser uma entidade que ele carrega como umbandista. Para ele, o desafio estava em falar das “personas místicas” que o público muitas vezes não conhece muito bem e trata de forma pejorativa, enquanto a peça intencionava trazer para a realidade. “Foi um processo bom, esse ritual de pedir permissão, de trazer essa energia para o elenco todo”, contou.

Uma das cenas de Roger Neri no espetáculo. Foto: Ana Cristina da Silva.
A sintonia entre todos os elementos

Em cinco dias de apresentação, mais de 500 pessoas foram assistir Tranca-ruas na Maré e em Vista Alegre. No elenco, 34 artistas, mais 5 compondo apenas a banda (que também se complementava com atores ao longo do espetáculo), que além dos efeitos sonoros essenciais para o espetáculo acompanhavam as composições autorais criadas para a peça. Um dos componentes da banda foi o ator Êlme, que está no Entre Lugares há 11 anos mas em 2023 ficou afastado como ator em função de seu coletivo e voltou no processo do espetáculo, de criação das músicas, participando novamente. Para ele, ver a peça se desenrolar sem atuar, no olhar da música, foi interessante, e foi também um processo de criação coletiva. Envolvia a diretora musical Renata Tavares, a banda, e os próprios atores. “A gente se conhece, independente de elenco ou não, quando vai ver é tudo no mesmo barco, a gente só sabe que tem que fazer… a banda dava pitaco na cena, eles davam pitaco na música, ficava esse jogo”, contou.

Êlme fez parte da banda do espetáculo e também se apresentou em dois dias. Foto: Ana Cristina da Silva.

A equipe do Entre Lugares recebeu o texto e começou a trabalhá-lo no início de outubro, tendo duas semanas de encontro barradas pelas operações policiais que aconteceram, o que encurtou o tempo de transformar o texto no espetáculo. Para a atriz Maria Lucilda Cavalcante, de 26 anos, o espetáculo só saiu quando todo mundo entendeu que fazia parte de um todo: “Eu acho que a gente demorou a acreditar no espetáculo, mas quando a gente acreditou, a gente conseguiu estrear (…) No espetáculo tudo é cena, a contrarregragem também é montagem, também é marca. Não é só o ator que está em cima do platô fazendo a fala que tem que saber o que fazer, mas quem está fazendo a contrarregragem também tem seu papel fundamental naquela cena”. Para ela, que chegou este ano de Caucaia, no Ceará, para fazer doutorado e buscou um local de vínculos, o Entre Lugares foi fundamental.

Maria Lucilda de Cavalcante, também chamada de Lucy, falou da importância de trabalhar como coletivo no teatro. Foto: Ana Cristina da Silva.

“O Entre Lugares tem um axé, aqui tudo é sagrado, a gente varre o galpão, limpa a cadeira que a gente senta, tudo é teatro. O teatro não é só chegar na estreia e pisar no palco, no Entre Lugares a gente percebe que tudo que a gente faz é teatro e a gente só consegue construir a obra quando a gente cuida do espaço, dos detalhes”.

Maria Lucilda Cavalcante

Essa sintonia foi exatamente o que o estudante de teatro Bruno Mendes sentiu quando assistiu a última apresentação, em Vista Alegre, no dia 20. Convidado por uma amiga com quem estuda na Casa de Artes de Laranjeiras, ele foi sabendo apenas o nome do espetáculo. Para ele, Tranca-ruas foi vivo e autêntico: “Eu estou impressionado como é rico humanamente, as ferramentas humanas, como eles se complementam desde a composição musical do espetáculo a como é rico na dança, no ritmo, nas nuances corporais deles. Eu achei muito vivo… é uma unidade que eles têm”.

Bruno Mendes, estudante de teatro, foi prestigiar no último dia. Foto: Carolina Vaz.

Com a última apresentação em Vista Alegre, o Entre Lugares finalizou a temporada e as atividades de 2023, mantendo aberta a possibilidade de novas apresentações.

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