Para que nunca mais aconteça: CPV realiza Aulão de Ditadura Militar na Maré

Eventos, Geral, Memória

Por Carolina Vaz

Em tempos de intervenção militar, prisão do ex-presidente Lula, militares posicionando-se “atentos às suas missões institucionais” e a trágica execução da vereadora Marielle Franco, as educadoras e educadores do Curso Pré-Vestibular (CPV) do CEASM realizaram uma “força-tarefa” para realizar um aulão de Ditadura Militar, no dia 7 de abril, no Morro do Timbau. No dia 1º, havia-se completado 54 anos do Golpe Militar que o Brasil viveu nas décadas de 60, 70 e 80.

Educadoras e educadores do CPV que organizaram o Aulão. Foto: Carolina Vaz

Primeiramente, Marielle presente

A memória de Marielle foi trazida em diversos momentos do Aulão. Ela participou da primeira turma do CPV, e desde essa época o Aulão existe, ocorrendo periodicamente sobre diversos temas. “Essa aula é uma memória que nós não queremos. Mas a gente continua fazendo para entender o que foi a Ditadura e nunca reivindicar que os militares tomem o poder”, afirmou Humberto Salustriano, educador de História.

O início: a farsa da ameaça comunista

Para compreender o arranjo político que levou ao Golpe em 1964, foi exibido um trecho do documentário “O dia que durou 21 anos”, a respeito da Ditadura, abordando acusações feitas, na época do presidente João Goulart (Jango), sobre seu governo ser “comunista” por tentar implementar reformas de base, como reforma tributária, agrária e urbana, para melhorar as condições de vida da população. Na época, a polarização entre esquerda e direita era muito forte, por estar em curso a Guerra Fria, e assim as acusações tomaram corpo. Para barrar o “avanço do comunismo”, uniram-se forças: imprensa, empresários, militares, sociedade civil (como setores conservadores da Igreja católica), com forte apoio político e financeiro dos Estados Unidos, numa operação chamada de Brother Sam. Jango foi tirado do poder, entraram os militares e a mídia aplaudiu.

Vinícius da Silva, educador de Geografia do CEASM. Foto: Carolina Vaz

Favelas na ditadura: resistência

O apoio à Ditadura não foi a única voz que se estabeleceu. Artistas, figuras políticas e alguns veículos de mídia posicionaram-se contra, lutando pela democracia e liberdade. Trabalhadores e estudantes fizeram greves. Mas nas favelas a população enfrentava problemas maiores do que a falta de liberdade de expressão: o período da ditadura foi também o período em que houve mais remoção nas favelas cariocas, e mais de 140 mil pessoas foram deslocadas. Execuções pela polícia tornaram-se práticas comuns, e ainda são, como lembrou o educador de Sociologia Aristênio Gomes: “Certas práticas iniciadas na Ditadura, como os sumiços e as mortes, continuam acontecendo nas favelas e periferias do Brasil”. Na Maré, a remoção extinguiu a Favela do Rala Côco, e seus moradores foram para Antares, em Santa Cruz. A organização política levou ao surgimento de Associações de Moradores, que lutavam por demandas mais imediatas mas também colaboraram para evitar mais remoções. Nessa época surgiu a Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), que também trabalhou por permanência e melhorias.

A Maré, além de ser favela, era alvo constante das ações arbitrárias do Exército, localizado na Avenida Brasil. Eles impunham toque de recolher, queimavam casas e cercavam terrenos como “área militar”, que posteriormente comercializavam. O governo do presidente João Figueiredo levou o programa Pró-Morar, também baseado na remoção, e foi o movimento de resistência na Maré que evitou que grande parte da favela fosse mandada para bairros distantes, segundo Antônio Carlos Pinto Vieira, educador de Literatura. Na época da ditadura, a Maré tinha 70 mil moradores em situação de extrema miséria, morando em palafitas e barracos de madeira. Ocorreu então uma “remoção interna” para áreas aterradas, como a Vila do João, que leva tal nome em “homenagem” ao presidente ditador.

Luta armada e o fim do regime militar

A resistência da população levou à formação de forças paralelas e a esquerda se armou formando guerrilhas. Um exemplo é a Ação Libertadora Nacional (ALN), cujo líder era Carlos Marighella. Os grupos se financiavam com assaltos a bancos e realizavam sequestros de diplomatas em troca da liberdade de guerrilheiros presos. Alguns militantes, como artistas, foram exilados, o que contribuiu para que as informações da ditadura chegassem a outros países, principalmente em relação a prisões, torturas e mortes. Governos do exterior posicionaram-se contra o regime brasileiro e isso colaborou para o surgimento de divergências internas no poder vigente e o fim da Ditadura, dando início à “abertura democrática”. No entanto, as práticas do regime permaneceram na formação das forças militares brasileiras e estas se mantêm a postos para novamente servir à elite do país. O pós-Ditadura ainda foi abordado mais profundamente no Aulão, passando pela formação de partidos, o fortalecimento do neoliberalismo no Brasil, os governos petistas e as políticas públicas que contribuíram para a ascensão social de uma parte da população.

Interdisciplinar: história e arte

Nem só de História se fez o Aulão do CPV. A abertura, inclusive, foi uma apresentação teatral da companhia bUsina Teatral, com um trecho do espetáculo “Do marginal ao Municipal”, que trata da história do samba e aborda a violência contra o povo preto e pobre. Ao final, eles cantaram uma paródia em homenagem a Marielle e relembraram as injustiças cometidas contra Rafael Braga, Cláudia Ferreira, Anderson Gomes e o menino Jeremias Moraes, de 13 anos. “Nós temos tentado transformar esse luto em luta e arte”, afirmou Walney Gomes. Ainda teve o educador Aristênio Gomes tocando e cantando a música “Para não falar que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, e os clipes “Mil faces de um homem leal”, dos Racionais MC, e “Marielle Franco”, da MC Carol.

Cia bUsina Teatral apresentou espetáculo e homenageou Marielle Franco. Foto: Carolina Vaz
Aristênio Gomes, educador de Sociologia, tocou e cantou música de Geraldo Vandré. Foto: Carolina Vaz

Seu José Bezerra: memória viva da resistência

Um dos espectadores atentos do aulão foi Seu José Bezerra de Araújo, morador e militante de Manguinhos, de 71 anos. Aposentado, ele atua em cerca de dez movimentos sociais, principalmente de comunidade. Lembrou de alguns episódios relatados no aulão, como o Comício da Central do Brasil, em março de 1964, que presenciou. “Nós vemos muitas pessoas que não sabiam e passam a ter conhecimento dessa história, e isso me fortalece, porque eu durante toda a minha vida fui contra as discriminações: do preto, do negro, da mulher”, afirmou. Foi justamente na época da Ditadura que Seu Bezerra entrou para os movimentos sociais, há 30 anos, e não saiu mais. “O sistema capitalista, para dar certo, tem que convencer as pessoas de que é assim mesmo e não adianta querer mudar. (…) Em 518 anos, nunca houve democracia no Brasil, sempre quem mandou foi o poder econômico. A ditadura não acabou, ela mudou de nome: de ditadura militar para ditadura econômica”. Ele ainda comentou sobre manter a tradição de contar a história da Ditadura para os mais jovens: “É importante porque o jovem sempre sabe as coisas pela mídia, mas a mídia tem o seu interesse, o seu projeto, e coloca tudo superficial, não fala das causas. Assim é muito mais fácil nos manipular”.

Seu José Bezerra: militância começou na Ditadura. Foto: Carolina Vaz

 

 

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