Pesquisa mostra exclusão da população LGBTI+ favelada nos direitos a segurança, saúde, educação e emprego

Cultura, Educação, Notícias, Saúde, Segurança

Por Carolina Vaz

Colaboração de Raysa Castro

Foto de capa: Talita Nascimento

“Essa realidade que a gente vê de bonitinho, de glamour, não é a maior parte, a gente não vive de purpurina e sapatão então menos ainda, porque somos mulheres. Sapatão, mulher trans, são as que menos vivem de purpurina, porque elas que não trabalhem para ver se vai comer…”

– Michele Seixas, diretora geral do Instituto Brasileiro de Lésbicas

Um novo levantamento, realizado entre 2022 e 2023, em pelo menos 90 favelas do estado do Rio de Janeiro, comprovam que a população LGBTI+ de favelas, principalmente a parcela negra, mulheres trans, homens trans e travestis, sofre mais violência das forças policiais e demais violações em seus direitos. Todos os dados estão no dossiê “Violação dos direitos e episódios de violência contra pessoas LGBTI+ de favelas”, lançado no dia 25 de janeiro no Observatório de Favelas, na Nova Holanda, Maré. O dossiê foi produzido pelo Observatório de Violências LGBTI+ em Favelas, um projeto do grupo Conexão G, em parceria com o laboratório de dados também mareense Data_labe.

Violência por forças armadas

A pesquisa entrevistou, entre 2022 e 2023, um total de 1705 pessoas, num processo de três etapas: aplicação de um formulário, realização de debates em grupos focais e entrevistas estruturadas. O formulário continha 11 eixos, possibilitando a obtenção de dados demográficos e abordando aspectos como moradia, trabalho, educação e cultura. O dossiê publicado apresenta os dados de Segurança Pública, Educação e Empregabilidade, Moradia e Saúde.

No que se refere à segurança, a pesquisa constatou que 48% dos entrevistados já tiveram a casa invadida por policiais em operações. Mais da metade da população LGBTI+ favelada que respondeu, 58%, já passou por abordagem policial. Apenas no grupo de pessoas identificadas como negras, 37% sofreram violência nessas abordagens. Quase 1/4 das 1705 pessoas já se sentiram ameaçadas nas abordagens por causa de sua identidade de gênero ou orientação sexual.

Baixa escolaridade e pouco acesso ao trabalho formal

Os dados também demonstram ser a população LGBTI+ de favela a mais excluída das instituições de ensino. De todos os respondentes, 19% não ingressaram no Ensino Médio, e metade desse grupo sequer concluiu o Fundamental. Mas nem todos que entraram no Médio concluíram: 33% evadiram. O mesmo processo se repete com o ensino superior: pouco menos de 12%, de todos que responderam o formulário, ingressou numa faculdade, e mesmo assim quase 70% evadiram. Ou seja, menos de 1/3 da população favelada LGBTI+ concluiu a faculdade. O dossiê traz ainda um recorte da população travestigênere (mulheres trans, travestis e trans masculinos): um quarto dessa população ingressou no Ensino Médio; e 9% ingressou na faculdade.

Em virtude da nítida correlação entre escolaridade e acesso a emprego, a equipe do Observatório de Violências decidiu manter educação e empregabilidade no mesmo capítulo do dossiê. O que a pesquisa constatou foi que, do total de respondentes, 41% nunca teve um trabalho de carteira assinada. Menos de um terço (28%) estão formalmente empregados, 35% em atividades profissionais informais, e 19% desempregados. Os dados pioram para a população travestigênere: 40,5% em trabalhos informais, e 23,5% desempregada.

No mesmo eixo são informadas as rendas dessa população: 9% vive com renda mensal abaixo de 500 reais, e grande parte desse grupo é de trans e travestis. Até um salário mínimo é a renda de 31,5% dos respondentes, e pouco mais de 40% possui renda mensal de até R$ 2.200.

População trans e travesti tem menor acesso a escolaridade e bons empregos. Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil.
Obstáculos no acesso à saúde

O dossiê traz ainda dados preocupantes sobre a utilização dos serviços de saúde pública do território, principalmente para trans e travestis. Os dados mostram que quase metade das mulheres trans vão a consultas mais de duas vezes ao ano, porém homens trans raramente vão. Alguns dos motivos apresentados são: a equipe do posto não respeita o nome social; o serviço é limitado; a pessoa prefere um outro estabelecimento de saúde, em outro bairro; sofre discriminação; ou sente vergonha. Especificamente os homens trans afirmaram que os postos perto de sua casa não distribuem os medicamentos que precisam em seus processos de hormonização.

Uma pesquisa favelada e representativa

O evento de lançamento do dossiê foi marcado pelos depoimentos da equipe do Conexão G que elaborou o formulário, assim como do DataLabe que realizou formações com a equipe e trabalhou a sistematização dos dados. Dois destaques foram a metodologia utilizada na elaboração e a representatividade de toda a equipe que fez parte. As perguntas foram pensadas por pessoas de todas as identidades e orientações LGBTI+, e faveladas, portanto pensando suas próprias experiências, que informações seriam relevantes de serem descobertas para ter de fato um dossiê fiel à realidade.

Evento reuniu representantes de órgãos públicos, financiadores do Dossiê e equipe do projeto. Foto: Conexão G.

Um dos que falaram sobre isso foi Polinho, coordenador de dados no Data_Labe: “Às vezes, pessoas que não passam por aquele cotidiano não vão fazer ideia nenhuma sobre que categorias precisam estar naquele formulário pra entender a complexidade que é ser uma mulher trans, uma pessoa não binárie”. Para Agatha de Oliveira, uma das pesquisadoras, os encontros e formações foram fundamentais para que a equipe soubesse como abordar os temas com o público-alvo, com acolhimento e escuta.

Pesquisadores(as) comunitários(as), da esquerda para a direita: Wanessa, Ruany, Yuri, Agatha e Lör. Foto: Conexão G.

“Isso é uma forma de fazer uma comunicação entre pares, porque a gente olha pra pessoa e se identifica, e isso automaticamente faz com que a pessoa se abra mais e a coleta de informações se torna mais rica e mais humanizada”.

Agatha de Oliveira, pesquisadora comunitária do Observatório de Violências LGBTI+ em Favelas

A equipe de 2023 foi composta por 14 pesquisadores(as) comunitários(as/es), em sua totalidade trans, travestis ou não-bináries. Ruany Jenner, cria da Maré e uma das pesquisadoras, contou sobre o momento de aplicação dos formulários, no qual sentia que a semelhança entre ela e demais travestis, principalmente pretas e faveladas, gerava uma abertura das mesmas para responder as perguntas e sentirem-se à vontade para contar de violências e violações sofridas.

Sem dado não tem política pública

Outro ponto muito abordado no evento foi a relevância da pesquisa como fonte de dados para futuras políticas públicas, específicas para LGBTI+ de favelas, ao mesmo tempo em que estas deveriam ser feitas pelo poder público. Gilmara Cunha, diretora executiva e fundadora do Conexão G, destacou: “Foram 18 anos para conseguir de fato levantar [os dados]… isso nos mostra o quanto é difícil trabalhar as favelas no que tange à questão LGBT, que a gente precisa cada vez mais pensar outras propostas para avançar na política”. O coordenador do programa Rio sem LGBTfobia, Ernani Alexandre, comentou o fato de o estado do Rio ser considerado um dos que têm as melhores políticas públicas para a população LGBTI+, porém no recorte territorial de favela elas não se aplicam, e desse modo o dossiê é importante para que o poder executivo saiba onde aprofundar. Leilane Reis, oficial de raça e gênero do Instituto Raça e Igualdade, um dos financiadores do projeto, comentou a importância dos dados, também, para uma pressão internacional. A formalização dos fatos, observados nas experiências pessoais mas agora sistematizados em documento, facilitam que articuladores em órgãos como a própria ONU pressionem o governo brasileiro a construir políticas públicas específicas.

Gilmara Cunha celebrou, após quase 18 anos de Conexão G, a realização da pesquisa.
Foto: Conexão G.

Para além dos dados, o evento contou com depoimentos destacando a vivência cotidiana de pessoas LGBTI+ de favela, ignorada pelo poder público. Michele Seixas, moradora do Complexo do Alemão e diretora-geral do Instituto Brasileiro de Lésbicas, comentou a vulnerabilidade da população de favela à violência, com as constantes operações policiais que impedem a mobilidade e até mesmo o acesso ao trabalho. “Quando a gente fala de violação de direitos é desde o acesso à alimentação até quando você tem o braço do Estado na porta da sua casa, são múltiplas violações”, afirmou, acrescentando que para além do corre diário é a própria população LGBT que precisa produzir dados como esses para tentar motivar políticas públicas.

Última mesa do evento apresentou alguns dos dados da pesquisa. Foto: Conexão G.

O pesquisador comunitário Lör de Mendonça comentou a invisibilidade dos homens trans na própria comunidade LGBTI+, com pouco acolhimento, e ainda sem acesso a benefícios sociais e serviços como os de saúde que muitas mulheres trans acessam na Fiocruz. Yuri Cantizano, também pesquisador, destacou a recusa de médicos em receitar os hormônios para os homens, alegando desconhecimento do tema, e alertou sobre a alta de preços dos hormônios para uma população de pouca renda. “São diversos atravessamentos que a gente sofre, a gente não tem dados sobre isso, simplesmente pro sistema a gente não existe”, resumiu.

O dossiê

O dossiê “Violação dos direitos e episódios de violência contra pessoas LGBTI+ de favelas” teve o apoio de Fundação Heinrich Böll, Fundo Canadá para Iniciativas Locais, Instituto Raça e Igualdade, e Organização das Nações Unidas. Pode ser acessado aqui.

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