Protagonismo e diversidade: o início da Semana de Arte Favelada

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Entrevistas: Ana Cristina da Silva, Carolina Vaz e Raysa Castro.

Texto por Ana Cristina da Silva.

No início de novembro se iniciou a primeira edição da Semana de Arte Favelada (SAF) que, através de atrações gratuitas, deu destaque a diferentes produções artísticas e periféricas inseridas nos eixos de artes visuais, artes cênicas e artes literárias. Com uma estreia memorável, a iniciativa possibilitou que a favela ocupasse o espaço do Theatro Municipal do Rio de Janeiro em uma quarta-feira, 2 de novembro. A programação contou com uma exposição de quadros e esculturas, uma roda de conversa e apresentações de dança. No entanto, para o seu segundo dia, a Semana de Arte Favelada seguiu para o Conjunto de Favelas da Maré e lá realizou a Sessão de Cria, no dia 4 deste mês. A noite contou com a exibição de um filme, dois curtas e um show do grupo Black Owl. 

CRIAS NO MUNICIPAL

Parte da exposição composta por obras de diferentes artistas periféricos no Theatro Municipal. Foto: Raysa Castro.

Foi no feriado de Finados, dia 2 de novembro, que a estreia da Semana de Arte Favelada aconteceu. Com uma programação que envolvia o trabalho de inúmeros artistas periféricos, a iniciativa fez com que uma extensa fila se formasse em uma das entradas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde nem um feriado no meio da semana e nem a leve chuva de um dia nublado foram capazes de impedir a vontade daquele público de estar ali. Durante a roda de conversa, mediada pela educadora e gestora cultural Pâmela Carvalho, o assunto era a cena cultural favelada, fazendo com que o ator e professor de teatro Wallace Lino, que participava da roda, perguntasse ao público quantos ali eram favelados e estavam pela primeira vez naquele espaço. Com um número considerável de braços erguidos, ele logo esclareceu que aquela também era a sua primeira vez, fazendo com que a roda, também composta pela performer e diretora de movimento, Camila Rocha; o ator e escritor, Marcos Diniz; e o mestre em Artes e curador do Galpão Bela Maré, Jean Carlos Azuos, refletisse a grandiosidade daquele momento, onde artistas e moradores da favela eram prestigiados em um ambiente que, de certa forma, representa a arte de maneira hegemônica.

“Eu não acho que eu ainda não tinha ido (ao Theatro Municipal) porque eu não tinha acesso, eu acho que tinha um lugar de acesso naquele espaço, mas eu não tive um convite, eu não me sentia convidado naquele espaço. Como eu também não me sinto convidado em vários espaços que eu entro (…) eu fui me questionando que não fui eu que não quis ir, tem uma história que nos aparta daquele lugar, tem uma história que diz que aquele lugar não é nosso e tem uma estrutura arquitetônica que diz que não é nosso. Então é isso, foi emocionante pra mim estar lá. Foi muito bonito aquele dia”.

— Wallace Lino, ator e professor de teatro da Maré.

Para Bruno Laerte, mareense de 20 anos de idade, a Semana de Arte Favelada funcionou como uma “válvula de escape”. Afinal, ela permitiu que ele pisasse pela primeira vez no Theatro Municipal já como um expositor. Pelo salão Assyrio, onde se encontrava a exposição, seus dois quadros atraiam novos olhares. Quadros estes que contavam uma história que não era bonita, mas era sua realidade: “Eu estudei no CIEP Operário Vicente Mariano e por muitas das vezes eu me vi dentro desse confronto policial. Quando eu era criança, eu tive uma conversa com a minha mãe de que eu era mais rápido que as balas (…) eu resolvi mostrar isso num quadro, essa minha velocidade, essa minha perspectiva da infância de que eu sempre vivi cercado nesse conflito policial”, diz o artista.

Tal como Laerte, a artista e educadora Nlaisa Luciano fazia da Semana de Arte Favelada uma oportunidade para trazer uma narrativa reflexiva. Sua escultura intitulada de 1987 despertou a curiosidade dos visitantes, fazendo com que a todo momento um grupo de pessoas analisasse a obra composta por lã, vidro e lâminas: “Nas minhas obras eu gosto de trazer as narrativas que foram apagadas pela História. E eu, como uma mulher trans, não poderia deixar de trazer a narrativa das travestis de São Paulo (…) no contexto de ditadura teve a Operação Tarântula, que foi uma operação de caça às travestis. Uma operação que capturava as travestis que estavam nas ruas com o intuito de limpar a cidade, de higienizar. Então a minha obra foi pensada nisso, em como eu poderia construir um monumento que pudesse resgatar essa história, mas ao mesmo tempo subverter essa narrativa”.

Nlaisa Luciano ao lado da obra “1987, SP”. Foto: Raysa Castro.

“Eu acho que eu vivo nessa escuridão, ainda mais sendo um artista preto e favelado. Por muitas das vezes eu sinto que ninguém vai comprar as minhas artes, sabe? Porque elas mostram aquilo que ninguém quer ver, aquilo que ninguém quer consumir. Ninguém quer botar uma pessoa preta, morta, na sala de jantar (…) eu sinto que as pessoas não querem ver isso. Elas querem passar direto, elas não querem olhar e estudar o que está sendo mostrado, o que eu pintei, a história que eu estou contando. Então sempre vivo nessa escuridão, nesse abandono. E esse projeto, ele veio como uma válvula de escape. Eu nunca tinha pisado no Theatro Municipal, eu não sabia nem onde ficava, e saber que a primeira vez que eu pisei lá foi para expor foi muito revolucionário pra mim”.

— Bruno Laerte, artista da Maré.
Apresentação do coletivo Mulheres ao Vento no palco do Theatro Municipal. Foto: Raysa Castro.

Se tudo começou com a exposição e a roda de conversa, o grande dia se encerrou no salão de espetáculos do Theatro Municipal. O projeto iniciado na Maré em 2016, Mulheres ao Vento, foi o primeiro a se apresentar. Com vocais potentes, movimentos muito bem ensaiados e falas bem significativas, o coletivo de dança multilinguagem contou sua história e emocionou a plateia. “Ter aquelas mulheres no palco, apresentando um trabalho artístico a partir das suas memórias, cara… Tipo assim, tem empregadas domésticas ali, tem mães, tem avós, mulheres que a arte nunca vai dizer que aquele espaço é pra elas, sabe? É uma subversão”, diz Wallace Lino que, por sua vez, também assistiu ao último espetáculo da noite. Apresentado por três dançarinos, o espetáculo Boca, dos Imperadores da Dança, levou o funk para dentro do Municipal e prendeu a atenção do público ao abordar o poder e a importância da arte para quem convive em um local tomado pelo tráfico.

O grupo Imperadores da Dança apresentou o espetáculo “Boca”, no Theatro Municipal. Foto: Raysa Castro.

SESSÃO DE CRIA

O segundo dia da Semana de Arte Favelada ocorreu no Museu da Maré, numa sexta-feira (4). Com ingressos adquiridos gratuitamente pelo Sympla, o público pôde assistir as exibições de dois curtas produzidos por artistas favelados: Expresso Parador e Noite das Estrelas. O primeiro curta, dirigido por João Vitor Santos, mais conhecido como JV, morador da Penha, teve sua estreia bem ali. Fruto da colaboração entre o coletivo Cafuné na Laje e o coletivo Arame Farpado, Expresso Parador conta a história de Lidiane Oliveira, uma atriz e moradora da Vila Palmares. Se passando todo dentro de um ônibus, o curta utiliza uma perspectiva distópica para refletir sobre como funcionam questões como locomoção, transporte e tempo para corpos negros e periféricos do Rio de Janeiro.

“O Expresso Parador é um filme que deixa muito espaço para as pessoas que estão assistindo colocarem sua interpretação e sua vivência nele. A gente pensou coisas para não serem respondidas pelo filme para que as pessoas carreguem um pouco das suas experiencias, de seus repertórios em trânsito pela cidade, para que a gente possa também se transportar um pouco, se indignar um pouco com as condições que a maior parte da população, a população que mais produz nessa cidade, está relegada. (…) A gente gostaria muito que o Expresso Parador fosse um convite pra gente poder repensar a nossa participação dentro disso tudo, como que a gente está refém e como que o nosso tempo é roubado”.

— JV Santos, diretor do curta Expresso Parador.
O curta Expresso Parador teve sua estreia na Semana de Arte Favelada. Foto: reprodução.

Produzido pelo Grupo Entidade Maré, o documentário performático Noite das Estrelas foi a segunda exibição da noite. Fazendo uso de múltiplas linguagens, a produção mistura passado e presente para dar voz a uma população preta, favelada e LGBTQIA+, tendo como ponto de partida um dos eventos culturais que tanto marcou o Conjunto de Favelas da Maré entre as décadas de 80 e 90. A produção conta com fotos e vídeos antigos, na mesma medida em que apresenta performances que celebram as histórias de personagens como Madame e Pantera, as travestis artistas que aparecem no curta dando depoimentos e cedendo suas memórias, possibilitando que o documentário trabalhasse com uma releitura mais. “A Noite das Estrelas faz parte de uma série de shows, ela não é a única história, ela é uma série de shows. Então a gente fez um recorte. (…) Começamos ali na Noite das Estrelas e ali a gente abriu muitas caixinhas, caixinhas que a gente vê no presente. A gente pensou: o filme tem que fazer a gente entender que o tempo, pra gente LGBT, não é o mesmo tempo que se pensa as relações normativas, porque um corpo que morre mais cedo, e geralmente LGBT’s têm uma expectativa de vida menor, principalmente em área de favela, entende o tempo de um outro jeito”, diz o diretor Wallace Lino.

Dirigido por Paulo Victor Lino e Wallace Lino, Noite das Estrelas foi exibido no Museu da Maré. Foto: Reprodução.

Com o galpão do Museu da Maré ainda cheio, a Sessão de Cria se encerrou com a exibição do filme nacional, recentemente indicado ao Oscar de 2023, Marte Um, que conta a história dos integrantes de uma família preta e periférica de Minas Gerais no ano de 2018, pouco depois das eleições presidenciais. No entanto, apesar da última exibição, a noite no Museu da Maré só se encerrou após o show enérgico da Black Owl. Junto do produtor e hitmaker, Gui Coruja, os músicos Nizaj e Wallace Coutinho apresentaram músicas originais que muito falavam sobre as vivências na favela, o que dialogou inclusive com algumas das propostas das produções audiovisuais exibidas ali.

“A gente também trabalha e visa essa ideia na Black Records, de levar a cultura do povo favelado, levar o conhecimento, levar e compartilhar, né. (…) Quando a gente foi vendo os filmes, o que eles iam dizendo pro público, as ideias que eles transmitiam, eu falei ‘Pô, Nizaj, o show tá perfeito pros filmes que estão colocando, vai ficar tudo lindo’. É esse sentimento de gratidão mesmo, por poder estar fortalecendo a cultura da melhor forma”.

— Wallace Coutinho, músico da Black Owl.

Patrocinada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia e Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro, através dos editais Retomada Cultural e Municipal em Cena, a Semana de Arte Favelada segue agora com sua programação no Centro de Artes da Maré, localizado na rua Bittencourt Sampaio, 181, onde acontecerá o Festival Multilinguagens nos dias 26 e 27 de novembro.

Para saber mais sobre a programação, acesse o Instagram do projeto: @semanadeartefavelada

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