Dia Mundial do Livro e a diversidade literária na Maré

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Por Ana Cristina e Carolina Vaz

Em 1995 o dia 23 de abril foi escolhido pela UNESCO para comemorar o Dia Mundial do Livro e do Direito do Autor. A data, escolhida para homenagear os escritores Inca Garcilaso de la Vega, Miguel de Cervantes e William Shakespeare, que morreram neste mesmo dia no ano de 1616, é utilizada para incentivar a leitura e celebrar não só o livro, como também seus escritores e profissionais que ajudaram a desenvolvê-lo. Neste dia, ao redor do mundo, muito se reflete sobre a importância da leitura e dos direitos dos autores. Representando os escritores do Conjunto de Favelas da Maré, três autores, de diferentes favelas, tornam-se personagens deste tema, abordando suas paixões pela escrita e refletindo sobre o mercado editorial no país.

— Não sei quem é que está por trás dessa maluquice toda, mas seja quem for é um verme, e vermes eu mato pisando. — Esbravejava a Capricorniana de pé. — E pouco me importa se vou ser a próxima. Se eu sair viva desse maldito jogo vou querer encontrar com você. Eu juro que vou te matar.
— Marcos Diniz, Insano Zodíaco: Meus de Estimação

 

Marcos segurando seu primeiro suspense “Insano Zodíaco: Meus de Estimação”. Foto: Ana Cristina da Silva.

No coração de um reino conhecido como Maré, havia um pequeno vilarejo de nome peculiar chamado Parque União, onde morava Marcos Diniz, um jovem aventureiro. Talvez assim começasse esta matéria, caso ela fizesse parte de um dos contos de Marcos. Este mareense, que também é ator e pedagogo, pode ser encontrado em 23 livros, onde ele apresenta histórias e contos de diferentes gêneros, como romance, drama, fantasia e até suspense. E, apesar de lá no início suas influências terem sido autores como Nicholas Sparks de “Querido John” e Rick Riordan de “Percy Jackson”, hoje, ele destaca a importância da valorização de escritores nacionais e editoras pequenas: “Eu tenho curtido muito uma escritora chamada Meg Mendes, tem algumas escritoras que não estão no mercado editorial grande e estão sendo muito publicadas por editoras pequenas”, informa Marcos.

Seu primeiro livro, “As Lendas de Colina”, foi resultado de um edital em 2016. O livro é uma antologia que reúne diferentes autores que tiveram seus contos aprovados. “Eu super indico a antologia para quem está começando e quer, de repente, testar, mostrar um texto para ver se vai ser selecionado ou não. Hoje em dia tem editoras que fazem antologias gratuitas, porque muitos desses editais você paga e recebe um número ‘xis’ de livros, mas tem muitas editoras fazendo editais gratuitos ou por financiamento coletivo”. Para ser publicado nesses mais de 20 livros, Marcos teve que correr atrás do que queria, no processo acabou se aventurando em outros gêneros. Foi assim com o seu livro “Insano Zodíaco”, um thriller proposto pela editora Arkanus Editorial que, hoje, irá para o seu segundo volume.

O livro As Lendas de Colina foi um trabalho colaborativo, fruto de um edital onde Marcos foi selecionado. Foto: Marcos Diniz.

Apesar de muito escrever sobre universos fantásticos dentro do gênero da fantasia, Marcos descreve uma realidade frustrante por vivermos uma “falsa ideia de incentivo à leitura”, em um país onde as editoras grandes dificilmente publicam novos autores e as pequenas são pouco conhecidas, tornando-se difícil de serem encontradas. Para piorar, segundo ele, há ainda a desvalorização do trabalho de confecção do livro, já que boa parte do dinheiro cobrado no produto final fica para as livrarias. “Não tem como você incentivar a leitura se você não proporciona um valor que valorize o trabalho dos profissionais que estão por trás, mas que de alguma forma propicie que esse indivíduo compre, acesse aquele livro”, diz o autor de 35 anos que destaca ainda a importância da valorização de coletivos literários para que escritores independentes, como tantos que temos no país, possam ser mais valorizados.

“Nasci em uma das comunidades que hoje compõem o bairro da Maré, mais precisamente no Morro do Timbau. (…) De conversar com antigos moradores, fui descobrindo um outro lugar. O Fundão, diziam, não era uma, mas oito ilhas. O litoral chegava até a Avenida Brasil. (…) Eis aqui, oitenta anos depois, Águas Cariocas. Para mim é um encontro com a memória daquilo que se perde e se reencontra, nos fluxos e refluxos das águas que movem nossa vida, nossos desejos, nossos sonhos…”
— Antônio Carlos Vieira, Águas Cariocas.
Antônio Carlos Vieira autografando o livro Águas Cariocas. Foto: Acervo pessoal.

Antônio Carlos Pinto Vieira, também conhecido como Carlinhos, é pesquisador e fundador do CEASM e do Museu da Maré. Ele assina a organização de duas obras e está finalizando uma terceira, dessa vez como autor. Em 2015, ele organizou o livro “A Guanabara como natureza: Águas Cariocas”. Trata-se de artigos escritos no jornal Correio da Manhã em 1936 pelo escritor e naturalista Armando Magalhães Corrêa, falecido em 1944. Esses artigos foram descobertos por Carlinhos mais de 70 anos depois: pesquisando para o Arquivo do Museu, ele percebeu que todos os detalhes sobre as ilhas e terras emersas da Baía de Guanabara descritas por Magalhães Corrêa há tantos anos descreviam, em muitos momentos, a história da Maré. Muitos dos artigos encontrados contam sobre o passado de favelas como Morro do Timbau e Pinheiro. O trabalho da organização desse livro, realizado por uma equipe do Museu, envolveu encontrar os arquivos, transcrever – pois estavam em material impresso -, atualizar a língua portuguesa e ainda adicionar notas explicativas. Antônio Carlos ainda assina o prefácio do livro.

Seis anos depois, em 2021, assinou a organização de outro livro junto com Luiz Antonio de Oliveira e Cláudia Rose: “A Maré em 12 Tempos. A obra conta a história da Maré a partir de 12 “tempos”, que também são os tempos da exposição de longa duração do Museu, e traz textos e fotos de moradores e pessoas que carregam uma história na militância política do bairro e da cidade. Carlinhos assina o capítulo “A Maré antes da Maré”, que mostra como era a região antes da ocupação por moradores. Nos dois casos, são livros feitos fora do roteiro “normal” de publicação por editoras: o primeiro, editado pela Outras Letras, foi patrocinado pela prefeitura e faz parte do conjunto de quase 20 obras da Biblioteca Rio450. O segundo foi editado e impresso em parceria com a Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Assim, nenhum dos dois teve finalidade de lucro para os organizadores.

A Ilha do Pinheiro é uma das relatadas por Magalhães Correa na obra; décadas depois se tornaria a Vila do Pinheiro, uma das favelas da Maré. Foto: Carolina Vaz.

Em entrevista, Carlinhos falou sobre a dedicação à literatura documental. Mestre em Memória Social, ele expressou a paixão que tem pelas marcas da construção do espaço, e destacou que no caso da Maré essa documentação ajuda os moradores a valorizarem a história do bairro. “Muitas vezes o lugar é visto pela mídia hegemônica e pelo senso comum como um lugar de produção de violência, que não tem história, que não tem cultura”. Uma das formas de mostrar que é, na verdade, o contrário disso, está na produção desses livros físicos, inclusive dando destaque a pessoas anônimas, que não são reconhecidas na construção da história da cidade. Por isso, também, busca-se fazer livros bonitos esteticamente, com uma boa qualidade de papel. Ainda, para ele, essa literatura documental consegue atrair o interesse de jovens, que muitas vezes não têm ou já perderam o hábito da leitura do livro físico. “Você pega um livro e entrega para o jovem dar uma olhada, ele fica encantado. Começa a identificar os lugares”. Para ele, tem um apelo da curiosidade e até da identidade, chegando num lugar do afetivo, e “não é qualquer obra que vai gerar isso”.

Agora, está em processo de finalização o primeiro livro em que Antônio Carlos assinará como autor, que fala sobre os nomes das ruas da Maré. Segundo ele, terá um formato “enciclopédico”, com nome das ruas, imagens e informações, com destaque para a história que inspira cada nome. Haverá ainda mapas e artigos de jornais. Este primeiro volume trata da história mais antiga do bairro e vai até o período de ocupação e formação das comunidades, por volta de 1940, com a construção da Avenida Brasil. Depois, para chegar até os dias atuais, ele calcula que serão necessários mais dois volumes. O primeiro é uma produção do Museu da Maré e tem previsão de lançamento ainda em 2022.

“Depois que Maria saiu, deixando Pauline a admirar o peixinho mágico, no canto do quarto, deitado numa almofada, o velho gato Felipe olhava entristecido para o aquário em virtude da atenção redobrada que sua dona dava àquele peixe que ele achava totalmente sem graça”.
— Rosário Frazão, A Triste morte do peixinho mágico.
Rosário Frazão com suas obras. Foto: arquivo pessoal.

A Rosário Frazão é de Pinheiro, no Maranhão, mas veio pra Maré há bastante tempo. Ela foi entrevistada pelo jornal O Cidadão em 2008, na edição 55, e atualmente mora no Piscinão de Ramos. Frazão migrou atrás do seu sonho de publicar livros, pois escrevia poemas desde os 15 anos de idade, e conseguiu: hoje ela já publicou 15 livros, de diversos gêneros. A escrita, para ela, sempre foi algo muito natural, uma consequência de tudo que vivia e sentia: “Eu sonhava muito, se estava sentada eu escrevia, era aquela fixação até eu escrever as coisas”.

Mas o talento não foi suficiente para fazer disso seu sustento. Sem muitos recursos para publicar os livros e sem patrocínio, ela destaca o quanto sempre lutou para fazer acontecer. “Já publiquei vários livros com a ajuda de quem vê que eu realmente gosto do que faço, mas também já levei muitas portas na cara. Como eu sou teimosa, eu não desisto”. As pessoas que a conhecem e admiram ajudam com divulgação, brindes e propagandas. Seu primeiro livro, Primeiros Passos (1998), foi patrocinado por uma senhora da sua cidade de origem, que também é escritora e dona de uma gráfica, e decidiu ajudar depois de ver as poesias da Rosário.

Rosário com uma versão ampliada de sua poesia “Meu sentimento, meu medo”. Foto: arquivo pessoal.

Alguns de seus livros são baseados em experiências da sua vida, principalmente da adolescência e juventude, com histórias de humor mas que também carregam suas dores e que, a autora acredita, servem para mostrar que as pessoas podem mudar. Porém, seu foco está no público infantil. Segundo Rosário, muitas obras são usadas para dar exemplos para as crianças, como O Urubu Apaixonado e também A Garota que Brigava Muito. Ela demonstra gostar muito desse público e ter o desejo de atender melhor seus pedidos: “Elas pedem ilustrações, só que não dá para fazer porque as coisas ainda estão muito caras e pedir patrocínio é muito cansativo. Com o tempo eu vou juntar um dinheiro e vou fazer um livro grande e ilustrado”. Apesar de todas dificuldades, Rosário nem cogita fazer obras como ebooks, pois “A melhor coisa é o livro na mão da gente”. Outra coisa que não passa pela sua cabeça é parar de escrever: “Se você tem um bom objetivo, luta que você consegue, vai lutando, vai vendendo pros amigos, nas escolas… E por aí vai”.

 

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