A Noite das Estrelas vive na Nova Holanda

Cultura, Notícias

Por Carolina Vaz

Colaboração de Raysa Castro

Foto de capa: Arthur Vianna

“Isso daqui não é o meu espetáculo. Esse espetáculo é da favela”. Assim resumiu Paulo Victor Lino, diretor da Ocupação Noite das Estrelas, no último domingo (04) após ver uma multidão, em grande parte LGBTQIAP+, festejar nas ruas da Nova Holanda. A ocupação, que reuniu performance, shows em trio elétrico e em palcos, desfile e danças de inspiração nas religiões de matriz africana, foi inaugurada em 04 de junho e permanece até 9 de julho na Nova Holanda. O evento foi idealizado pelo coletivo Entidade Maré como uma forma de voltar à ativa os shows chamados Noite das Estrelas que aconteciam no mesmo território 40 anos atrás, protagonizados por travestis e outras representantes da identidade LGBTQIAP+, e que deixaram de acontecer por volta do final dos anos 90.

Um dos registros da Noite das Estrelas original. Fonte: Entidade Maré.
A paz e a festa nas ruas da favela

O evento começou com a concentração no ponto de mototáxi, na rua Teixeira Ribeiro, onde moradores de várias favelas da Maré se reencontravam, recebendo também muitas pessoas de fora curiosas pelo que aconteceria no evento, o que até então somente os organizadores sabiam. Moradores que passavam percebiam a festa que ia se formando, com direito a trio elétrico e performers em motocicletas, e decidiram ficar também. O grupo seguiu na rua, fazendo sua primeira parada no cruzamento da Teixeira com a Principal. Ali, na primeira encruzilhada, as performances e as músicas que as embalavam deixavam nítido que aquela era uma festa referenciando Exu: aquele que abre os caminhos e leva mensagens. As performances eram a mensagem de que a Maré sempre foi o palco da população preta LGBTQIAP+.

Para a primeira performance, bailarinas/es/os chegaram de motocicletas, Foto: Arthur Vianna / Entidade Maré.

Em seguida, os presentes foram, em sua maioria, vendados pela organização do evento, para que caminhassem pela Maré sem ver, e sem, também, a possibilidade de julgar o local. Foi uma experiência sensorial e também de cuidado, uma vez que quem estava enxergando ao redor precisava orientar (olha o quebra-molas, cuidado com o buraco) e proteger as enormes filas que foram formadas. Segundo Paulo Victor Lino, diretor da ocupação, o objetivo era aguçar os sentidos do público, que não é só espectador na Noite das Estrelas, é também parte da cena. “Ainda mais falando de um território de favela, as pessoas de fora vêm com uma imagem pré julgada da favela, então a ideia de vendar as pessoas é dizer: vocês vão conhecer o território dentro do que a gente está propondo”.

A estratégia de vendar os presentes fez com que prestassem mais atenção aos sons da favela. Foto: Flávia Costa / Entidade Maré.

Já de olhos abertos, o público se viu numa nova encruzilhada: o cruzamento da Rua O, também chamada Rua Carlos Norberto de Andrade onde assumiu a fala a neta do Seu Carlos: a atriz do Entidade Maré Jaqueline Andrade. Ali, ela contou um pouco da história da Maré, fez referência a dona Orosina Vieira construindo seu barraco de madeira pouco a pouco, e explicou ao público o que seria o evento:

“Eu que estou aqui acredito na revolta, nesse mar de gente que são vocês hoje, na rua Carlos Norberto de Andrade, nome no meu avô (…) Eu quero propor hoje uma grande festa. Uma festa no estilo família Andrade na rua O”.

Jaqueline Andrade

Ali mesmo começou a montagem de uma passarela, com engradados de cerveja enfileirados, e artistas e público seguiram até a rua Bittencourt Sampaio. Lá, já estava o trio elétrico esperando o público com uma das maiores referências da cultural Ballroom do Rio de Janeiro: a mareense Preta QueenB Rull. Parte da multidão era formada por seus fãs, que vibraram com sucessos como Caipira Vogue e Acredite no seu Axé. As ruas da Nova Holanda foram completamente tomadas pelo clima de festa: uma festa na rua, com diversidade e respeito, unindo moradores e convidados de fora bem acolhidos e que, também, respeitavam o espaço onde haviam acabado de chegar. A quantidade de pessoas surpreendeu a organização, conforme contou Paulo Victor Lino, mas a colaboração natural dos moradores fez com que tudo desse certo.

Preta QueenB Rull animou a multidão nas ruas. Foto: Arthur Vianna/ Entidade Maré.

Em entrevista para o Jornal, Preta QueenB Rull contou da emoção de ter feito esse show na rua, na sua favela: “Esse foi o melhor show que eu já fiz na minha vida. Eu sou cria do Parque União, cria da Maré, e meu coração é só gratidão por estar aqui viva, celebrando, homenageando todas as LGBT que fizeram história aqui na década de 80”. Ela ainda destacou um fato inédito que foi a presença de sua família: sua mãe e seu irmão de 11 anos acompanharam o show junto ao enorme público presente. Preta também fez questão de falar sobre a identificação da cultura ballroom com as favelas “A ballroom é uma cultura preta que veio de um corpo de uma travesti preta e latina, e eu acredito que ainda tem muitas pessoas pretas faveladas LGBT que vão conhecer esse movimento e se encantar”.

Uma das pessoas que ficou encantada, de fato, foi a moradora Sendy Silva, artista mareense de 55 anos do grupo Mulheres ao Vento, que relembrou os shows da década de 80 que reuniam multidões no mesmo espírito daquele domingo. Para ela, foi importante como a experiência mostrou o lado bom da Maré: “Acredito que as pessoas que vieram nos visitar, nos conhecer, sentiram como é acolhedor, como é aconchegante, que aqui tem muita coisa positiva e muita arte”.

Todo o percurso da ocupação passa por encruzilhadas, propositalmente, segundo Paulo Victor Lino. Há cerca de três anos, quando o Entidade Maré começou a pesquisar a Noite das Estrelas, descobriu que a maioria das pessoas que participavam eram do candomblé, e pretas, de modo que o evento em si estava totalmente atrelado às culturas pretas, e assim deveria continuar. Mais especificamente a equipe focou na associação a Exus, que levam mensagens não apenas pela oralidade mas também pela gestualidade: “Nós LGBT somos exus urbanos, estamos construindo a nossa narrativa, a cultura, a arte que a gente traz é a nossa comunicação”.

O show da Preta foi finalizado na rua São Jorge, onde o público ocupou a quadra da escola de samba Gato de Bonsucesso para continuar a festa.

O início de uma reparação histórica

Na quadra do Gato, já preparada para a continuação da festa, havia dois palcos montados e rapidamente foi improvisada, também, uma passarela. Nela, performaram artistas como Milu Almeida, Lua Brainer, Luiz Otávio, Lorrany Sabatella, Nyara Wassa e Preta QueenB Rull. Também na passarela, foi feita uma reparação histórica: a bailarina Dominick di Calafrio, que no passado concorreu para ser musa da escola Gato de Bonsucesso e foi desclassificada por ser travesti, reivindicou seu título. Este foi entregue por Marcela Soares, também conhecida como Pantera, uma das precursoras da Noite das Estrelas tendo performado já nos anos 80. “Como sua madrinha eu vou dar a você aquele título que é seu de direito, porque você tem direito a receber esse título, e a sua reparação é a reparação de todas nós aqui”.

Marcela Soares, a Pantera, performou na quadra do Gato. Foto: Flávia Costa / Entidade Maré.

Wallace Lino, um dos diretores da ocupação, fez uma fala reforçando a importância do evento, como uma demonstração do potencial artístico dos artistas LGBTQIAP+ do território, que vem de décadas como mostra a história, e mostrando que, se os shows da Noite das Estrelas deixaram de acontecer décadas atrás e foram apagados da memória escrita da Maré, a Noite permaneceu viva nas que resistiram e nas gerações seguintes. Ele ainda dedicou o evento às participantes “originais” da Noite das Estrelas, como Marcela Soares.

“Eu queria que vocês [travestis] fossem vistas, que as pessoas conhecessem vocês. As pessoas perguntam pra gente como é resgatar essa memória e o que a gente tem respondido é que a gente não pode resgatar o que está vivo. Elas estão vivas! O nosso movimento é de reconhecimento e de devolutiva para vocês. Obrigada”.

Wallace Lino

O evento teve, ainda, uma fala da deputada estadual Renata Souza, que cresceu ali na própria rua São Jorge, e se lembrou nitidamente dos shows que as travestis faziam na favela, principalmente na Teixeira Ribeiro, e que ela frequentava na adolescência. Para ela, o evento foi fundamental para mostrar pra muita gente que a Maré é um lugar de festa, de cultura LGBT e de respeito. Do palco, ela entregou ao coletivo Entidade Maré a Moção de Louvor e Aplausos, da Assembleia Legislativa, como reconhecimento ao trabalho de elaboração de narrativas LGBTQIAP+ negras e faveladas. “Esse é um momento muito lindo e importante de a gente se reconhecer como pretos favelados LGBTQIAP+ e ninguém vai transformar a Maré num lugar de violência sempre. Esse é um lugar de potência, de cultura, de arte, de trabalhadores e trabalhadoras que sustentam suas famílias”.

Marcela Soares em foto de Mêrcez (Entidade Maré).

A continuação da noite ficou a cargo da equipe da festa Batekoo, cuja equipe de DJs selecionou as músicas próprias para inspirar todas as performers presentes.

Ocupação segue até julho

A Ocupação Noite das Estrelas continuará acontecendo todos os domingos, até o dia 9 de julho, sempre começando às 16h no ponto do mototáxi da Rua Teixeira Ribeiro. Para quem chega pela Avenida Brasil, é a Passarela 9. Haverá ainda a exposição “A Noite das Estrelas uma galáxia imorrível”, com documentos fotográficos da história cultural LGBTQIAP+ da Maré, na Lona Cultural Herbert Vianna. O filme Noite das Estrelas, produzido pelo Entidade Maré e lançado em 2020, terá exibições na rua Sargento Silva Nunes, na Casa Resistências (Vila dos Pinheiros) e no Instituto Trans, sendo esta última complementada por um debate com as artistas do filme.

A ocupação também se destaca pelas parcerias estabelecidas no território: tem parcerias com Redes da Maré, Lona da Maré itinerante, e Lona Cultural Municipal Herbert Vianna. Tem o apoio, também, da Cia Marginal, Conexão G, Centro de Cidadania LGBTI+, Gato de Bonsucesso e Artefatos Luminosos.

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